Monday, June 9, 2014

O atentado à Democracia Representativa Brasileira por detrás do Decreto 8.243/2014


O atentado à Democracia Representativa Brasileira por detrás do Decreto 8.243/2014

 

I - Introdução

Por mais que tente, é impossível não discutir política neste momento que o país está vivendo. Ademais, como já dizia o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, “o problema daqueles que não gostam de política é que eles são governados por aqueles que gostam muito”. Brecht, para os que não sabem, era socialista, tendo inclusive partido para o exílio durante a Alemanha Nazista e considerado um dos mais ferrenhos adversários de Hitler (Brecht, detalhe, não era judeu). Apesar de admirar o autor, não deixo de discordar de seus posicionamentos políticos (após a guerra, por exemplo, Brecht retornou à Alemanha, à parte oriental, recém-dividida, de orientação comunista, pró-Moscou). Portanto, apesar de pessoalmente gostar de alguns colegas que defendem o objeto de discussão deste texto, não posso deixar de discordar de seus posicionamentos políticos, ou preocupar-me com o futuro do país.

Confesso que não estava muito a par do já famoso Decreto 8.243/2014 (“Decreto 8.243”, ou “Decreto”), recentemente promulgado por nossa Presidente da República, Dilma Rousseff, e que vem sendo amplamente debatido pela mídia e criticado por diversos juristas de renome. Inicialmente, ao ler algumas postagens no Facebook, especialmente referente à Revista Veja, imaginei que fosse devaneios alucinados daquela revista sabidamente de tendência conservadora (ou “coxinha” para alguns) e nem prestei atenção ao assunto, ou estava muito interessado acerca do mesmo.

Porém após ler por casualidade o interessante (e assustador) artigo anexo do Jus Brasil, site especializado em pesquisa jurídica, semana passada, e analisar por pormenores o Decreto em questão, minha opinião – após debruçar-me a fundo na análise do controverso dispositivo legal, e não apenas baseada em opiniões de sites e revistas, mas por interpretação própria como advogado e mestrando em Ciência Política[1] – é de que o dispositivo em discussão é o maior atentado à democracia representativa e à divisão de poderes em nosso país desde o restabelecimento da democracia na década de 80 – pelo menos das tentativas que tenho conhecimento, como cidadão não participante ativo do sistema político (ok, a derrotada PEC 33, que limitava os poderes do Supremo Tribunal Federal, se aproximou bastante...). Aliás, como operador do Direito, preocupa-me a quantidade de emendas constitucionais e mudanças legislativas que ocorrem diariamente nesse país e que, no final, trazem mais instabilidade, que estabilidade ao sistema.

Após desenvolver minha opinião sobre o Decreto, pude observar o comentário de alguns amigos e colegas. Os de esquerda, se dizendo “abismados” com a falta de cultura jurídica de quem o critica, sustentavam que o decreto meramente visa aproximar o governo da sociedade civil, e que a proposta é amplamente democrática, dizem, coaduna completamente com o pensamento de filósofos altamente considerados pela esquerda, como Jünger Habermas, coisa igual a qualquer país europeu, que respeita a social-democracia, etc e tal.

Vamos por partes: quanto ao argumento do Habermas é fácil de derrubar. Eu simplesmente não gosto da sua teoria. Habermas e outros autores da chamada Escola de Frankfurt, como Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Max Horkheimer propoem a fazer uma análise da sociedade baseado no pensamento de marxistas, como Karl Marx (naturalmente) e Georg Lukács, juntamente com outros pensadores a exemplo do psiquiatra Sigmund Freud e filófosos alemães, como Immanuel Kant e Georg Hegel (autor moderno que melhor desenvolveu o método dialético – após reaproveitado por Marx). Porém, o que menos gosto em Habermas – aliás o que realmente não me agrada – é sua leitura marxista do Estado. Habermas, autor mais contemporâneo que os demais mencionados, é considerado como parte da segunda fase da Escola de Frankfurt, ou ainda um autor neomarxista, corrente que surgiu para analisar o papel do Estado – sobre uma ótica marxistas, naturalmente – após as crises econômicas globais que ocorreram especialmente devido ao choque do petróleo, na década de 70.

O que não me agrada na visão de neomarxistas, como Habermas, Ralph Miliband, Nicos Poulantzas e Claus Offe (esse último é mais tranquilo de todos, praticamente um semi-capitalista) é essa excessiva ênfase na força do capital privado no direcionamento de interesses do estado, mesmo no chamado Estado Democrático. De fato, naturalmente o capital privado e grupos de pressão moldam os interesses do Estado, porém coaduno mais com a visão dos autores pluralistas, como Robert Dahl, Seymour Lipset e David Truman, da importância e grupos de pressão, com poder de capital, ou não, e que moldam os interesses do Estado Democrático de Direito (aliás, os pluralistas foram fruto de crítica dos neomarxistas, que sempre punham a ênfase maior no capital e na tão famosa luta de classes, como mola moldadora dos interesses estatais).

É fato que o Brasil é uma democracia em construção, que é uma democracia incompleta e que está muito aquém de atingir seu potencial pleno. Dados são maquiados, ou camuflados na cara dura. Quando se fala, por exemplo, que 97% das crianças estão matriculadas na escola e que estão sendo aprovadas, não se leva em consideração a qualidade do ensino que se tem no país (que sabemos que é baixíssima e que, com a avaliação contínua – implementada pelo governo do PSDB, diga-se de passagem, mas mantida inalterada pela PT no poder, praticamente nenhum jovem estudante de ano, independente de ter obtido condições para passar, ou não). Os exemplos são múltiplos, como a inflação (que é maquiada), o índice de desemprego (falar em pleno emprego num país com 35% de analfabetismo funcional, metade da sua população economicamente ativa na informalidade e milhares de miseráveis nas ruas é, no mínimo, risível) e, já que citei o analfabetismo, quem realmente crê que há apenas 10% de analfabetos no país, como nos fazem crer os índices oficiais?

Num país com baixo índice de desenvolvimento humano (IDH) e de baixa renda per capita, como o nosso, ainda que o PIB seja relativamente alto (7º no índice global, para o quinto maior país em extensão territorial e quinto em população), a qualidade do voto – que é obrigatório, constituindo um direito e um dever ao mesmo tempo – muitas vezes é baixa (e o nível de competência políticos igualmente é baixo, havendo-se uma discrepância entre se sentir representado e ser representado por parlamentares democraticamente eleitos – vide as manifestações de junho do ano passado).

Independente das falhas de nosso sistema político (e daí faz-se necessário uma reforma política, com revisão do voto proporcional de lista aberta, do financiamento de campanha), das falhas da nossa Constituição, das falhas de nossas políticas públicas (há uma enorme diferença entre o que está na lei, o que é aplicado e o que pode ser aplicado), o sistema representativo como está, pelo menos permite que o representante eleito ao Congresso Nacional o represente, com suas idéias e ideologias, gerando contrapontos diversos e um suposto balanço de poderes. O balanço entre os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – no Brasil está longe de ser harmônico e independente, como previu Charles Louis de Secondat, Barão de Montesquieu, como veremos mais adiante, fato que, por si, reforça o esvaziamento dos poderes do Legislativo pelo Decreto em questão.

II - O Decreto 8.243/2014

Estabelece o inciso IV, do artigo 84, de nossa Constituição Federal:

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;” (grifo nosso)

Pelo inciso grifado, podemos perceber que a função primordial do decreto presidencial é – e sempre foi – meramente regular leis sancionadas e promulgadas pelo Presidente da República. No entanto, com a Emenda Constitucional n.32/2001, promulgada no dia fatídico de 11 de setembro de 2001, que introduziu e coadunou diversas mudanças inconstitucionais à nossa Lei Maior (o mundo realmente estava em maus lençóis naquele dia...), houve introdução de novo inciso (inciso VI), ao artigo 84, ampliando o escopo de atuação do decreto presidencial.[2] Vejamos:

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)

VI – dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (nosso grifo)

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

A alínea a), por nós grifada, é relevante, pois teoricamente é a que mais poderia convalidar a constitucionalidade do Decreto 8.243  (que já esclarecendo, é inconstitucional). Entretanto, este não vem a ser o caso.

Decretos, por definição, não podem criar novas secretarias, ou alocar recursos não previstos em Lei. O Decreto 8.243 faz as duas coisas. Daí sua inconstitucionalidade gritante. Sobre a égide de estabelecer uma Política Nacional de Participação Social (PNPS), de trazer membros da sociedade civil para participar no processo decisório em nível federal, esvazia a atuação do Congresso Nacional e eleva movimentos sociais, supostamente os representantes da sociedade civil, praticamente à condição de conselheiros de Estado (com a formação de “conselhos populares”), cuja opinião chega a ser praticamente obrigatória.

Entretanto, em nível municipal, a democracia participativa, como definida por autores como Carole Pateman e C.B. Macpherson, sobre o viés de um governo de esquerda (ou progressista, como gosta de se denominar), realmente pode funcionar. O filósofo John Stuart Mill já previa a participação do eleitor no dia a dia das eleições e esse modelo democrático permite que o eleitor tenha sua opinião levada em consideração nas tomadas de decisões de sua cidade. Convenhamos, no entanto, que numa perspectiva nacional, é muito mais difícil o cidadão, como bem aponta o grande cientista político alemão Max Weber, ter consciência dos problemas e questões vigentes, além de ser inviável a participação de toda a sociedade. Imagine se a cada decisão importante do governo federal, o cidadão comum tivesse que ir para Brasília discuti-la? O custo e caos que isso geraria?!

O Decreto, elaborado por um governo que se diz de esquerda, que supostamente “dialoga” com os movimentos sociais (ou os copta?) visa incluir a sociedade civil em seus processos decisórios, inclusive pondo membros da sociedade civil, dentro das agências regulatórias, criadas durante as reformas de estado promovidas pelo PSDB, após as privatizações do setor telefônico, elétrico, etc. (que conhecidamente o PT se pôs frontalmente contra). O problema já se põe aí. Não seriam essas agências essencialmente de caráter técnico? Cujas decisões têm que obedecer a critérios objetivos?

O decreto, além de mexer na questão orçamentária e criar novos órgãos sem autorização de lei (daí, repito, sua inconstitucionalidade), demonstra o total desprezo que determinados setores políticos têm pela chamada “democracia representativa liberal burguesa”, onde há pesos e contrapesos e os três poderes são harmônicos e independentes entre si.  

Sabemos que, na realidade, em nosso país, não é exatamente assim que funciona, havendo historicamente prevalência do Poder Executivo sobre os demais poderes, dotado esse desde a Constituição de 1988 de poder de orçamento, de veto e, acima de tudo, das Medidas Provisórias.

Porém, ainda que nos assuntos diários da nação, o Executivo demonstre sua garra e imponha sua agenda legislativa, por haver um Congresso Nacional com partidos diversos e políticos das mais diversas esferas ideológicas, mesmo que desmoralizado pela opinião pública e pressionado pelo governo em troca de Emendas Orçamentárias, esse mesmo Congresso consegue equilibrar as forças do governo, barrando projetos que aquele não seja maioria (um exemplo foi a não prorrogação da CPMF, campanha liderada por diversas entidades empresariais e que era do interesse do governo).

O Decreto simplesmente esvazia ainda mais a força do CN, elevando a categoria de conselheiros de Estado, os chamados “movimentos sociais”, que para efeito do dispositivo são membros da “sociedade civil”. Abaixo ipsi literis, o artigo 2º e inciso I, do Decreto 8.243/2014:

“Art. 2º  Para os fins deste Decreto, considera-se:

I - sociedade civil - o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações;” (grifo nosso)

O Decreto já seria um absurdo por suas claras inconstitucionalidades e por esvaziar as atribuições e participação do Poder Legislativo em Políticas Públicas (uma situação é o Poder Executivo escutar a opinião da sociedade civil quando na elaboração de políticas públicas importantes – a exemplo das chamadas Audiências Públicas, projetos de lei de iniciativa popular, referendos e plebiscitos –, outra é ele, representante eleito pela maioria da população, como é posto pelo Decreto, depender da aprovação da chamada "sociedade civil", para a elaboração de suas políticas).

Porém, o pior do Decreto realmente é a própria definição do que seria a chamada “sociedade civil”, conceito por demasiado vago, se pararmos para pensar. Ao incluir, nessa poderosíssima entidade supragovernamental denominada “sociedade civil”, influenciadora e elaboradora de políticas governamentais, os chamados movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, o governo simplesmente abre espaço para que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento Passe Livre (MPL), e outros, que nem ao menos são organizados juridicamente, e que muitas vezes se utilizam de métodos violentos e antijurídicos para atingirem seus objetivos, não podendo vir a ser representados perante tribunais, participem nas decisões mais importantes da nação.

Como bem observa o Erick Vizolli, autor do artigo do Jus Brasil que inicialmente baseei minha análise, partidos minúsculos, como o PSTU e Psol, que apresentam resultados pífios nas eleições, acabam influenciando muito mais os rumos do governo e de suas políticas, que partidos muito maiores e com maior número de representantes, devido à pressão que estes exercem através dos movimentos sociais que fazem parte, ou lideram. Indago: será isso essencialmente democrático? Ademais, após implementado esse decreto, não será tarefa tão simples para novo governo revogá-lo, como foi alegado, posto que os movimentos sociais, alinhados em geral ao atual partido no poder e à outros partidos de esquerda, estarão por demasiado emparelhados na máquina pública. Será um processo contínuo de sabotagem a todas as iniciativas de qualquer partido de oposição que chegue ao governo. Infelizmente, já desconfio que qualquer presidente que venha derrotar o PT nas urnas, já terá enorme dificuldade em governar, visto a aparelhamento e inchaço da máquina pública quem vem ocorrendo nos últimos 11 anos.

Ainda que haja o argumento de que a Secretária Geral da Presidência, no decreto responsável por estabelecer esse “dialogo” com a sociedade civil, por lei é autorizada a criar cinco secretárias (artigo 3º, § 2o, V, Lei 10.683/2003 – alteração trazida pela Lei 12.462/2011, ou seja, já no governo Dilma Rousseff, e que no meu entendimento, sua constitucionalidade é duvidosa, passível de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN), a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais, novo órgão previsto no Decreto (artigo 19), é praticamente um novo órgão ministerial, não, portanto, passível de ser criada por decreto.

III – Conclusão

Em síntese ao todo exposto, o decreto mostra-se frontalmente inconstitucional e, apesar de pregar maior participação democrática, é essencialmente antidemocrático (o que se faz comum em regimes com tendências autoritárias: fala-se em fortalecer as instituições democráticas, através de plebiscitos e referendos – Napoleão, Hitler, Chavez, etc. – e assim concentrar poderes e gradativamente elimina-las).

Quanto ao argumento de que já ouvi, de que a Suíça, por exemplo, possui conselhos populares, sim, ela, de fato, possui. Porém a Suiça é um país pequeno, do tamanho do estado do Rio de Janeiro, com uma população altamente politizada, que não passa dos sete milhões de habitantes, e com maior consciência de problemas locais. No Brasil, dado o nível educacional de nossa população, os custos de participação política, nossa extensão territorial e a complexidade de nossos problemas, a sociedade civil representada nesses conselhos populares será composta basicamente de sindicalistas e manifestantes profissionais, que não representam a sociedade brasileira como um todo. Independente disso, não sou favorável à democracia participativa, especialmente na esfera nacional, pois amarra por demasiado a atuação dos representantes democraticamente eleitos a grupos organizados de pressão (muitas vezes inclusive de orientação governistas). Creio que a velha e conhecida democracia representativa é o melhor sistema, com exceção de todos os outros (parafraseando o ex-primeiro-,ministro britânico Winston Churchill).

Independente de ser pessoalmente favorável, ou não, à democracia participativa, o Decreto, no entanto, muito mais se assemelha ao sistema implementado na Rússia Comunista por Vladimir Lenin, anteriormente à ditadura implementada por Josef Stalin, do que ao modelo suíço. Para tempos presentes, muito se aproxima da Venezuela, cujo discurso dos chavistas sempre foi fortalecer a democracia e a representação popular. Pessoalmente, já tive a oportunidade de visitar a Venezuela, tive parentes que residiram por lá durante o Governo Chavez, conheci diversos venezuelanos exilados nos Estados Unidos, quando morei na Flórida, e realmente não é o destino que quero para o meu país.

Se, no entanto, esse é o sistema que a maioria dos brasileiros desejam (democracia participativa, aos moldes socialistas), que seja feita às claras, através de uma nova Constituição, de novo modelo jurídico, por votação da maioria e referendo popular, onde os prós e contras de ambos os sistemas sejam cristalinamente esclarecidos à população. Do contrário, vivemos numa ditadura, onde se legisla por decreto (relembrando que nas Ditaduras de Vargas e dos Militares, também se legislava por decreto, Decreto-Lei, sem a participação do Congresso).

Abaixo, para referência, o artigo da Jus Brasil que mencionei e que, inicialmente, baseei-me:


Para aqueles que consideram a Venezuela um modelo viável, especialmente pela redução da pobreza e das desigualdades sociais, recomendo:





[1] Relembrando que sou advogado, com amplos estudos na área de Direito Constitucional, Internacional e Políticas Públicas, além de atualmente ser mestrando em Ciência Política por uma universidade federal, onde tive a oportunidade de analisar os diversos modelos de democracia existentes.
[2] Recomendamos: O decreto presidencial à luz da Emenda Constitucional nº 32, de Ricardo Martins Costa (http://jus.com.br/artigos/3844/o-decreto-presidencial-a-luz-da-emenda-constitucional-n-32).

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