Monday, June 9, 2014

O atentado à Democracia Representativa Brasileira por detrás do Decreto 8.243/2014


O atentado à Democracia Representativa Brasileira por detrás do Decreto 8.243/2014

 

I - Introdução

Por mais que tente, é impossível não discutir política neste momento que o país está vivendo. Ademais, como já dizia o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, “o problema daqueles que não gostam de política é que eles são governados por aqueles que gostam muito”. Brecht, para os que não sabem, era socialista, tendo inclusive partido para o exílio durante a Alemanha Nazista e considerado um dos mais ferrenhos adversários de Hitler (Brecht, detalhe, não era judeu). Apesar de admirar o autor, não deixo de discordar de seus posicionamentos políticos (após a guerra, por exemplo, Brecht retornou à Alemanha, à parte oriental, recém-dividida, de orientação comunista, pró-Moscou). Portanto, apesar de pessoalmente gostar de alguns colegas que defendem o objeto de discussão deste texto, não posso deixar de discordar de seus posicionamentos políticos, ou preocupar-me com o futuro do país.

Confesso que não estava muito a par do já famoso Decreto 8.243/2014 (“Decreto 8.243”, ou “Decreto”), recentemente promulgado por nossa Presidente da República, Dilma Rousseff, e que vem sendo amplamente debatido pela mídia e criticado por diversos juristas de renome. Inicialmente, ao ler algumas postagens no Facebook, especialmente referente à Revista Veja, imaginei que fosse devaneios alucinados daquela revista sabidamente de tendência conservadora (ou “coxinha” para alguns) e nem prestei atenção ao assunto, ou estava muito interessado acerca do mesmo.

Porém após ler por casualidade o interessante (e assustador) artigo anexo do Jus Brasil, site especializado em pesquisa jurídica, semana passada, e analisar por pormenores o Decreto em questão, minha opinião – após debruçar-me a fundo na análise do controverso dispositivo legal, e não apenas baseada em opiniões de sites e revistas, mas por interpretação própria como advogado e mestrando em Ciência Política[1] – é de que o dispositivo em discussão é o maior atentado à democracia representativa e à divisão de poderes em nosso país desde o restabelecimento da democracia na década de 80 – pelo menos das tentativas que tenho conhecimento, como cidadão não participante ativo do sistema político (ok, a derrotada PEC 33, que limitava os poderes do Supremo Tribunal Federal, se aproximou bastante...). Aliás, como operador do Direito, preocupa-me a quantidade de emendas constitucionais e mudanças legislativas que ocorrem diariamente nesse país e que, no final, trazem mais instabilidade, que estabilidade ao sistema.

Após desenvolver minha opinião sobre o Decreto, pude observar o comentário de alguns amigos e colegas. Os de esquerda, se dizendo “abismados” com a falta de cultura jurídica de quem o critica, sustentavam que o decreto meramente visa aproximar o governo da sociedade civil, e que a proposta é amplamente democrática, dizem, coaduna completamente com o pensamento de filósofos altamente considerados pela esquerda, como Jünger Habermas, coisa igual a qualquer país europeu, que respeita a social-democracia, etc e tal.

Vamos por partes: quanto ao argumento do Habermas é fácil de derrubar. Eu simplesmente não gosto da sua teoria. Habermas e outros autores da chamada Escola de Frankfurt, como Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Max Horkheimer propoem a fazer uma análise da sociedade baseado no pensamento de marxistas, como Karl Marx (naturalmente) e Georg Lukács, juntamente com outros pensadores a exemplo do psiquiatra Sigmund Freud e filófosos alemães, como Immanuel Kant e Georg Hegel (autor moderno que melhor desenvolveu o método dialético – após reaproveitado por Marx). Porém, o que menos gosto em Habermas – aliás o que realmente não me agrada – é sua leitura marxista do Estado. Habermas, autor mais contemporâneo que os demais mencionados, é considerado como parte da segunda fase da Escola de Frankfurt, ou ainda um autor neomarxista, corrente que surgiu para analisar o papel do Estado – sobre uma ótica marxistas, naturalmente – após as crises econômicas globais que ocorreram especialmente devido ao choque do petróleo, na década de 70.

O que não me agrada na visão de neomarxistas, como Habermas, Ralph Miliband, Nicos Poulantzas e Claus Offe (esse último é mais tranquilo de todos, praticamente um semi-capitalista) é essa excessiva ênfase na força do capital privado no direcionamento de interesses do estado, mesmo no chamado Estado Democrático. De fato, naturalmente o capital privado e grupos de pressão moldam os interesses do Estado, porém coaduno mais com a visão dos autores pluralistas, como Robert Dahl, Seymour Lipset e David Truman, da importância e grupos de pressão, com poder de capital, ou não, e que moldam os interesses do Estado Democrático de Direito (aliás, os pluralistas foram fruto de crítica dos neomarxistas, que sempre punham a ênfase maior no capital e na tão famosa luta de classes, como mola moldadora dos interesses estatais).

É fato que o Brasil é uma democracia em construção, que é uma democracia incompleta e que está muito aquém de atingir seu potencial pleno. Dados são maquiados, ou camuflados na cara dura. Quando se fala, por exemplo, que 97% das crianças estão matriculadas na escola e que estão sendo aprovadas, não se leva em consideração a qualidade do ensino que se tem no país (que sabemos que é baixíssima e que, com a avaliação contínua – implementada pelo governo do PSDB, diga-se de passagem, mas mantida inalterada pela PT no poder, praticamente nenhum jovem estudante de ano, independente de ter obtido condições para passar, ou não). Os exemplos são múltiplos, como a inflação (que é maquiada), o índice de desemprego (falar em pleno emprego num país com 35% de analfabetismo funcional, metade da sua população economicamente ativa na informalidade e milhares de miseráveis nas ruas é, no mínimo, risível) e, já que citei o analfabetismo, quem realmente crê que há apenas 10% de analfabetos no país, como nos fazem crer os índices oficiais?

Num país com baixo índice de desenvolvimento humano (IDH) e de baixa renda per capita, como o nosso, ainda que o PIB seja relativamente alto (7º no índice global, para o quinto maior país em extensão territorial e quinto em população), a qualidade do voto – que é obrigatório, constituindo um direito e um dever ao mesmo tempo – muitas vezes é baixa (e o nível de competência políticos igualmente é baixo, havendo-se uma discrepância entre se sentir representado e ser representado por parlamentares democraticamente eleitos – vide as manifestações de junho do ano passado).

Independente das falhas de nosso sistema político (e daí faz-se necessário uma reforma política, com revisão do voto proporcional de lista aberta, do financiamento de campanha), das falhas da nossa Constituição, das falhas de nossas políticas públicas (há uma enorme diferença entre o que está na lei, o que é aplicado e o que pode ser aplicado), o sistema representativo como está, pelo menos permite que o representante eleito ao Congresso Nacional o represente, com suas idéias e ideologias, gerando contrapontos diversos e um suposto balanço de poderes. O balanço entre os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – no Brasil está longe de ser harmônico e independente, como previu Charles Louis de Secondat, Barão de Montesquieu, como veremos mais adiante, fato que, por si, reforça o esvaziamento dos poderes do Legislativo pelo Decreto em questão.

II - O Decreto 8.243/2014

Estabelece o inciso IV, do artigo 84, de nossa Constituição Federal:

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;” (grifo nosso)

Pelo inciso grifado, podemos perceber que a função primordial do decreto presidencial é – e sempre foi – meramente regular leis sancionadas e promulgadas pelo Presidente da República. No entanto, com a Emenda Constitucional n.32/2001, promulgada no dia fatídico de 11 de setembro de 2001, que introduziu e coadunou diversas mudanças inconstitucionais à nossa Lei Maior (o mundo realmente estava em maus lençóis naquele dia...), houve introdução de novo inciso (inciso VI), ao artigo 84, ampliando o escopo de atuação do decreto presidencial.[2] Vejamos:

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)

VI – dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (nosso grifo)

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

A alínea a), por nós grifada, é relevante, pois teoricamente é a que mais poderia convalidar a constitucionalidade do Decreto 8.243  (que já esclarecendo, é inconstitucional). Entretanto, este não vem a ser o caso.

Decretos, por definição, não podem criar novas secretarias, ou alocar recursos não previstos em Lei. O Decreto 8.243 faz as duas coisas. Daí sua inconstitucionalidade gritante. Sobre a égide de estabelecer uma Política Nacional de Participação Social (PNPS), de trazer membros da sociedade civil para participar no processo decisório em nível federal, esvazia a atuação do Congresso Nacional e eleva movimentos sociais, supostamente os representantes da sociedade civil, praticamente à condição de conselheiros de Estado (com a formação de “conselhos populares”), cuja opinião chega a ser praticamente obrigatória.

Entretanto, em nível municipal, a democracia participativa, como definida por autores como Carole Pateman e C.B. Macpherson, sobre o viés de um governo de esquerda (ou progressista, como gosta de se denominar), realmente pode funcionar. O filósofo John Stuart Mill já previa a participação do eleitor no dia a dia das eleições e esse modelo democrático permite que o eleitor tenha sua opinião levada em consideração nas tomadas de decisões de sua cidade. Convenhamos, no entanto, que numa perspectiva nacional, é muito mais difícil o cidadão, como bem aponta o grande cientista político alemão Max Weber, ter consciência dos problemas e questões vigentes, além de ser inviável a participação de toda a sociedade. Imagine se a cada decisão importante do governo federal, o cidadão comum tivesse que ir para Brasília discuti-la? O custo e caos que isso geraria?!

O Decreto, elaborado por um governo que se diz de esquerda, que supostamente “dialoga” com os movimentos sociais (ou os copta?) visa incluir a sociedade civil em seus processos decisórios, inclusive pondo membros da sociedade civil, dentro das agências regulatórias, criadas durante as reformas de estado promovidas pelo PSDB, após as privatizações do setor telefônico, elétrico, etc. (que conhecidamente o PT se pôs frontalmente contra). O problema já se põe aí. Não seriam essas agências essencialmente de caráter técnico? Cujas decisões têm que obedecer a critérios objetivos?

O decreto, além de mexer na questão orçamentária e criar novos órgãos sem autorização de lei (daí, repito, sua inconstitucionalidade), demonstra o total desprezo que determinados setores políticos têm pela chamada “democracia representativa liberal burguesa”, onde há pesos e contrapesos e os três poderes são harmônicos e independentes entre si.  

Sabemos que, na realidade, em nosso país, não é exatamente assim que funciona, havendo historicamente prevalência do Poder Executivo sobre os demais poderes, dotado esse desde a Constituição de 1988 de poder de orçamento, de veto e, acima de tudo, das Medidas Provisórias.

Porém, ainda que nos assuntos diários da nação, o Executivo demonstre sua garra e imponha sua agenda legislativa, por haver um Congresso Nacional com partidos diversos e políticos das mais diversas esferas ideológicas, mesmo que desmoralizado pela opinião pública e pressionado pelo governo em troca de Emendas Orçamentárias, esse mesmo Congresso consegue equilibrar as forças do governo, barrando projetos que aquele não seja maioria (um exemplo foi a não prorrogação da CPMF, campanha liderada por diversas entidades empresariais e que era do interesse do governo).

O Decreto simplesmente esvazia ainda mais a força do CN, elevando a categoria de conselheiros de Estado, os chamados “movimentos sociais”, que para efeito do dispositivo são membros da “sociedade civil”. Abaixo ipsi literis, o artigo 2º e inciso I, do Decreto 8.243/2014:

“Art. 2º  Para os fins deste Decreto, considera-se:

I - sociedade civil - o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações;” (grifo nosso)

O Decreto já seria um absurdo por suas claras inconstitucionalidades e por esvaziar as atribuições e participação do Poder Legislativo em Políticas Públicas (uma situação é o Poder Executivo escutar a opinião da sociedade civil quando na elaboração de políticas públicas importantes – a exemplo das chamadas Audiências Públicas, projetos de lei de iniciativa popular, referendos e plebiscitos –, outra é ele, representante eleito pela maioria da população, como é posto pelo Decreto, depender da aprovação da chamada "sociedade civil", para a elaboração de suas políticas).

Porém, o pior do Decreto realmente é a própria definição do que seria a chamada “sociedade civil”, conceito por demasiado vago, se pararmos para pensar. Ao incluir, nessa poderosíssima entidade supragovernamental denominada “sociedade civil”, influenciadora e elaboradora de políticas governamentais, os chamados movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, o governo simplesmente abre espaço para que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento Passe Livre (MPL), e outros, que nem ao menos são organizados juridicamente, e que muitas vezes se utilizam de métodos violentos e antijurídicos para atingirem seus objetivos, não podendo vir a ser representados perante tribunais, participem nas decisões mais importantes da nação.

Como bem observa o Erick Vizolli, autor do artigo do Jus Brasil que inicialmente baseei minha análise, partidos minúsculos, como o PSTU e Psol, que apresentam resultados pífios nas eleições, acabam influenciando muito mais os rumos do governo e de suas políticas, que partidos muito maiores e com maior número de representantes, devido à pressão que estes exercem através dos movimentos sociais que fazem parte, ou lideram. Indago: será isso essencialmente democrático? Ademais, após implementado esse decreto, não será tarefa tão simples para novo governo revogá-lo, como foi alegado, posto que os movimentos sociais, alinhados em geral ao atual partido no poder e à outros partidos de esquerda, estarão por demasiado emparelhados na máquina pública. Será um processo contínuo de sabotagem a todas as iniciativas de qualquer partido de oposição que chegue ao governo. Infelizmente, já desconfio que qualquer presidente que venha derrotar o PT nas urnas, já terá enorme dificuldade em governar, visto a aparelhamento e inchaço da máquina pública quem vem ocorrendo nos últimos 11 anos.

Ainda que haja o argumento de que a Secretária Geral da Presidência, no decreto responsável por estabelecer esse “dialogo” com a sociedade civil, por lei é autorizada a criar cinco secretárias (artigo 3º, § 2o, V, Lei 10.683/2003 – alteração trazida pela Lei 12.462/2011, ou seja, já no governo Dilma Rousseff, e que no meu entendimento, sua constitucionalidade é duvidosa, passível de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN), a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais, novo órgão previsto no Decreto (artigo 19), é praticamente um novo órgão ministerial, não, portanto, passível de ser criada por decreto.

III – Conclusão

Em síntese ao todo exposto, o decreto mostra-se frontalmente inconstitucional e, apesar de pregar maior participação democrática, é essencialmente antidemocrático (o que se faz comum em regimes com tendências autoritárias: fala-se em fortalecer as instituições democráticas, através de plebiscitos e referendos – Napoleão, Hitler, Chavez, etc. – e assim concentrar poderes e gradativamente elimina-las).

Quanto ao argumento de que já ouvi, de que a Suíça, por exemplo, possui conselhos populares, sim, ela, de fato, possui. Porém a Suiça é um país pequeno, do tamanho do estado do Rio de Janeiro, com uma população altamente politizada, que não passa dos sete milhões de habitantes, e com maior consciência de problemas locais. No Brasil, dado o nível educacional de nossa população, os custos de participação política, nossa extensão territorial e a complexidade de nossos problemas, a sociedade civil representada nesses conselhos populares será composta basicamente de sindicalistas e manifestantes profissionais, que não representam a sociedade brasileira como um todo. Independente disso, não sou favorável à democracia participativa, especialmente na esfera nacional, pois amarra por demasiado a atuação dos representantes democraticamente eleitos a grupos organizados de pressão (muitas vezes inclusive de orientação governistas). Creio que a velha e conhecida democracia representativa é o melhor sistema, com exceção de todos os outros (parafraseando o ex-primeiro-,ministro britânico Winston Churchill).

Independente de ser pessoalmente favorável, ou não, à democracia participativa, o Decreto, no entanto, muito mais se assemelha ao sistema implementado na Rússia Comunista por Vladimir Lenin, anteriormente à ditadura implementada por Josef Stalin, do que ao modelo suíço. Para tempos presentes, muito se aproxima da Venezuela, cujo discurso dos chavistas sempre foi fortalecer a democracia e a representação popular. Pessoalmente, já tive a oportunidade de visitar a Venezuela, tive parentes que residiram por lá durante o Governo Chavez, conheci diversos venezuelanos exilados nos Estados Unidos, quando morei na Flórida, e realmente não é o destino que quero para o meu país.

Se, no entanto, esse é o sistema que a maioria dos brasileiros desejam (democracia participativa, aos moldes socialistas), que seja feita às claras, através de uma nova Constituição, de novo modelo jurídico, por votação da maioria e referendo popular, onde os prós e contras de ambos os sistemas sejam cristalinamente esclarecidos à população. Do contrário, vivemos numa ditadura, onde se legisla por decreto (relembrando que nas Ditaduras de Vargas e dos Militares, também se legislava por decreto, Decreto-Lei, sem a participação do Congresso).

Abaixo, para referência, o artigo da Jus Brasil que mencionei e que, inicialmente, baseei-me:


Para aqueles que consideram a Venezuela um modelo viável, especialmente pela redução da pobreza e das desigualdades sociais, recomendo:





[1] Relembrando que sou advogado, com amplos estudos na área de Direito Constitucional, Internacional e Políticas Públicas, além de atualmente ser mestrando em Ciência Política por uma universidade federal, onde tive a oportunidade de analisar os diversos modelos de democracia existentes.
[2] Recomendamos: O decreto presidencial à luz da Emenda Constitucional nº 32, de Ricardo Martins Costa (http://jus.com.br/artigos/3844/o-decreto-presidencial-a-luz-da-emenda-constitucional-n-32).

Sunday, January 5, 2014

Por que muita gente não vai parar de usar o carro em São Paulo

Por que muita gente não vai parar de usar o carro em São Paulo

Recentemente o governo do prefeito Fernando Haddad, eleito há menos de um ano em São Paulo, resolveu criar centenas de faixas exclusivas para ônibus (e proibir táxis de transitar nelas). A despeito da necessidade de medidas do tipo, principalmente para desestimular o uso de carros, acreditamos que a mesma não obterá o alcance desejado em médio prazo, e temos dúvida em relação ao longo prazo.

Ressaltamos, inicialmente, que, historicamente, o governo brasileiro fez opção equivocada em relação ao transporte público. Houve opção histórica pelas estradas, ruas e avenidas em nosso país e, por consequência, ao carro e à indústria automobilística.

Já declarava o ex-presidente Washington Luís na década do século passada que “governar é construir estrada”.[1] E de fato, todo presidente do período republicano após Luís, inclusive Getúlio Vargas, que o depôs, demonstrou forte tendência a uma política desenvolvimentista voltada a construir estradas para a integração do país.[2] Ou nas palavras de alguns, “para cortar o país”. Destacamos, durante o período democrático do país (1946-1964), a criação da BR-116, rodovia que famosamente corta o país de norte a sul e a criação de diversas medidas governamentais para a construção de “estradas de penetração”, como o Fundo Rodoviário Nacional.

O crescimento das estradas, que se acelerou com o governo de Juscelino Kubistchek (1956-1961) e a instalação das grandes montadoras estrangeiras, foi ainda mais acelerado durante o Regime Militar (1964-1985). Durante o governo dos generais e marechais brasileiros, grande obras como a Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói, a Transpantaneira (incompleta), a BR-101 (cortando o litoral sul do país até o litoral nordestino), foram iniciadas.

O objetivo daquela obras, seguindo a então vigente Doutrina de Segurança Nacional, organizada através do Plano de Integração Nacional (PIN), foi, como o próprio nome indica, integrar o país. Os militares utilizavam termos como "integrar para não entregar" e "uma terra sem homens para homens sem terra" para realçar a necessidade de se trazer desenvolvimento e poavamento às mais diversas regiões do país e, assim, não permitir que estas caíssem em mãos estrangeiras. Tanto no governo de JK, quanto dos militares, vários Planos Nacionais de Viação (PNVs) foram postos em prática.

É evidente que durante a história do Brasil, tanto como Império, quanto como República, houve investimento em outras formas de transporte como a navegação de cabotagem, o transporte ferroviário e aéreo. Entretanto, especialmente a partir do século XX, houve investimento predominante na indústria rodoviária e automobilística, com reflexos no presente. Podemos citar como principal reflexo o chamado “Custo Brasil”, termo utilizado para se referir ao custo da exportação de nossos produtos, que ocorre, em geral, por caminhão, por estradas e rodovias, estas muitas vezes mal sinalizadas e conservadas (algumas, em alguns grotões do país, inclusive não pavimentadas), adicionando o preço da gasolina ao frete.

Isso sem mencionar os altíssimos índices de acidentes e mortes que ocorrem em estradas brasileiras, principalmente em véspera de feriados, ceifando a vida de significativa parte de nossa população, em especial a juventude.[3]

E as cidades? Bem, as cidades refletem essa política de prevalência do veículo automotor ao invés do tranporte coletivo, associado a outro poderosíssimo grupo de impacto econômico e político: as empresas de construção civil.

Em diversas metrópoles brasileiras, o concreto passa pelo planejamento urbano, destruindo a harmonia entre o homem e a natureza, visando abrir mais espaço para ruas e avenidas. O investimento em transporte sobre trilhos nas cidades brasileiras (metrô e trem) sempre foi insuficiente e até hoje poucas capitais possuem transporte ferroviário, sempre de pouca extensão, apesar de em muitos casos, como São Paulo, de boa qualidade.

Para reforçarmos o argumento de prevalência do concreto sobre o espaço urbano, em São Paulo, podemos mencionar que o Rio Ipiranga, onde D. Pedro I proclamou nossa independência às suas margens, não existe mais, tendo sido soterrado por concreto para a construção de avenidas. Nesse mesmo sentido, as Marginais Pinheiros e Tietê não foram bem planejadas, não respeitando o espaço de vazão dos rios em época de chuva, ou inclusive suas curvas naturais (os rios Pinheiros e Tietê, por exemplo, foram em diversos trechos canalizados).

Desnecessário dizer o descaso com a preservação do patrimônio histórico nacional, ressaltado no fato que, independente de qualquer outra coisa, ainda somos um país com alto grau de pobreza e miséria, onde preocupações com o meio ambiente, a cultura e o patrimônio histórico, ainda podem ser vistas como secundárias, posto que muitos têm como preocupação essencial conseguir seu alimento diário.  O próprio planejamento da cidade se faz presente em detrimento do patrimônio histórico, visando a construção de novos prédios e negócios.

Portanto, após extensa digressão histórica e cultural, podemos concluir que os paulistanos simplemente não vão abandonar carro, porque durante décadas, praticamente um século, estão acostumados a utilizarem veículos automotores próprios. Nesse sentido, carro traz mais conforto: ainda que o indíviduo fique duas horas parado no trânsito, está dentro de seu veículo ouvindo música, com ar-condicionado, ao invés de ficar de pé num ônibus lotado sem ar-condicionado (por experiência podemos afirmar que muitos ônibus em São Paulo nem sequer ar-condicionado possuem, isso num país de clima tropical).

Carro, portanto, representa status. Afinal, se realmente adentramos num país de classe média nessa última década, onde muitos finalmente podem adquirir itens que não podiam adquirir antigamente, como um veículo automotor, onde a desigualdade supostamente diminuiu principalmente através do consumo – e não devido a reformas estruturais essenciais, como a reforma da educação e a reforma tributária – parece-nos normal que as pessoas desejem adquirir seu veículo automotor zero.

Sobretudo, quando o governo federal, cujo partido no poder é o mesmo do Senhor Prefeito, reduz ou zera o IPI para veículos automotores, medida visando justamente auxiliar a indústria automobilistíca nesses tempos de desaceleração da economia.

Parece-nos, no mínimo, políticas contraditórias, que se contrapõem e se anulam. Seria, em palavras chulas, como dar liberdade a um cachorro, permitindo-lhe correr por largos campos, mas dando-lhe um choque elétrico numa coleira com controle remoto cada vez que ele decida fazer isso. Não nos toca como producente.

Ademais, conforme argumentamos, carro próprio representa status e, mais ainda, exclusividade. Infelizmente vivemos num país e – no caso de São Paulo – numa cidade, que, a despeito de nunca ter havido tantos cidadãos adrentando na classe média nos últimos dez anos, ainda existe muita pobreza, miséria e crime. (Indagamos-nos: será que, afinal, tantos brasileiros entraram na classe média? E se entraram, será que crime não está associado com outros fatores, como valores éticos e familiares, uso de drogas e a falência dos órgãos do Poder Público em cumpriram seu papel, não predominantemente pobreza, como defendem alguns setores da esquerda?)

 Voltando ao argumento da criminalidade gritante – que muitas vezes é um fator psicólogico –, o sujeito não anda na rua, não pega metrô, ou ônibus, porque crê que algo vá acontecer a ele, ainda que naquele momento nada vá ocorrer, nem exista qualquer possibilidade disso (podemos, novamente, argumentar este ponto por experiência própria, já que, quebrando a barreira da terceira pessoa, este autor foi assaltado algumas vezes, em alguns casos quando estava dirigindo, em outras não, porém, atualmente não dirige e não deixa de andar na rua, pegar ônibus, metrô, etc., sempre – usando o jargão popular – com um olho nas costas).

Andar na rua, acima de tudo, significa exposição, muita exposicão. Especialmente se o sujeito é casado, tem filhos, uma carreira estabilizada, usa terno e gravata para trabalhar... Mais uma vez, por experiência própria, andar nas ruas das grandes cidades brasileiras, usar transporte púbico, em especial São Paulo (foco do nosso artigo), é todo dia estar sujeito a ser abordado por miseráveis, mendigos, pedintes, drogados, vendedores ambulantes (no caso de mulheres, em alguns casos, por homens fazendo cantadas ofensivas), e, infelizmente, em algumas ocasiões, por criminosos.

Por último, entendemos que o foco do Senhor Prefeito Fernando Haddad em criar mais faixas de ônibus exclusivas está equivocado.

Primeiro, porque se havia algo de positivo nelas, é que, ainda que se diminuissse o espaço para carros nestas podiam transitar táxis com passageiros. Muitos abandonavam os carros, pois tinham a opção de poder utilizar táxis nessas faixas. O que era vantajoso para todos, e diminuía o número de carros em circulação, ainda que não beneficiasse exclusivamente as empresas de ônibus (será que esse é o objetivo da prefeitura?). A prefeitura chegou a suspender a permissão para que taxistas com passageiros transitem nessas faixas e já ameacou não renová-la, o que atualmente está em estudo.[4]

Segundo, porque se há algum transporte público que tem que se investir é o metrô e transporte sobre trilhos (a exemplo do trem urbano). É caro, demorado, trabalhoso, não rende tantos votos (pois em geral é feito embaixo do solo), porém o único que pode eventualmente convencer os paulistanos a abandonaram seus veículos, a despeito do forte incentivo para se adquirir um veículo automotor e da situação de insegurança que vive a cidade e o país.

Ademais, o transporte ferroviário, em especial o metrô, já que gostamos de nos comparar com os chamados “países desenvolvidos”, é o mais adotado naqueles países. É neste que o prefeito de Nova Iorque, o Primeiro Ministro do Reino Unido, entre outros políticos, costumam transitar. Por que nosso prefeito não dá o exemplo e começa a ir todos os dias, ele, seus assessores e secretários, para o trabalho de metrô e ônibus? Não apenas um dia, por vinte minutos, cercado de seguranças e repórteres como recentemente veio a ocorrer, porém todos os dias, para ir e voltar do trabalho, para ir em todos os eventos oficiais da prefeitura.

E não vale cortar caminho e pegar táxis, pois estes não podem transitar na faixa exclusiva de ônibus, o que fará que custem uma fortuna, fatura paga, naturalmente, com o dinheiro do contribuinte paulistano.

Sites Consultados








[1] Interessante observar que a primeira rodovia pavimentada do Brasil, a Rio-Petrópolis, em 1928, ocorreu durante o Governo de Washington Luís (1926-1930)
[2] Durante o Governo Vargas (1930-1845), foi criado Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), em 1937, que veio a ser substituído pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) em 2001.
[3] Apesar do número de acidentes em estradas esse ano, segundo as mais diversas publicações e índices terem caído, infelizmente, dia 22.12.2013, um domingo, próximo do Natal, acidentes de ônibus na Régis Bittencourt ceifou a vida de 16 pessoas, triste realidade que se repete todos os anos em nosso país, principalmente em época de festividades.