Sistema Constitucional nos EUA e o Ativismo Judicial, Por Olavo Caiuby Bernardes
(Versão atualizada em 24.06.2023, pós Dobbs v. Jackson Women's Health Organization (2022), que reverteu Roe v. Wade (1973).)
a) A Constituição
Norte-Americana e o sistema de precedentes
Constituição elaborada em 1787
(Promulgada em 4 de março de 1789).
Um preâmbulo, 7 artigos, 27 emendas.
Dez Primeiras
Emendas (1791). Carta de Direitos (Bill of Rights) – Liberdade de
expressão, liberdade de imprensa, liberdade de associação, liberdade de prática
de religião, direito ao porte de armas, inviolabilidade do domicílio, direito a
um tribunal de júri (julgamento por seus pares), direito contra a
autoincriminação, contra fianças e multas excessivas, penas inusitadas e
cruéis, entre outros direitos.
As Dez Primeiras Emendas originalmente seriam aplicáveis apenas ao governo
federal (e, portanto, tribunais federais), porém por interpretação da Suprema Corte,
em diversos casos, passaram, em sua maioria, a ser aplicadas aos estados, visto
que a 14ª Emenda (que se aplica aos estados) as teria incorporado (os casos
começam por Gitlow v. New York (1925)).
14ª Emenda. Emenda muito importante. Por própria declaração do legislador constituinte, aplica-se aos estados. Prevê o direito à vida, liberdade e devido processo
legal (due process of law), bem como o direito à proteção igual para
todos (equal protection of the laws).
A Constituição Norte-Americana e a Declaração de Independência (de 04 de julho
de 1776) não são documentos análogos, sendo os conceitos trazidos pela
Declaração (vida, liberdade, busca da felicidade...), conceitos que alguns
juristas dizem ter sido adotados pela Constituição Estadunidense, e outros que
seriam meras diretrizes.
Há
separação de poderes expressamente prevista pela Constituição que delimita suas funções, em nível federal – Artigos 1º a 3º; Artigo 6º, Cláusula Segunda, Cláusula
da Supremacia da Constituição, e Décima Emenda, que estabelece os Poderes
Delegados aos estados norte-americanos (entre estes de elaborarem suas próprias
Constituições Estaduais).
Checks
and balances (Pesos e contrapesos). O
legislador constituinte norte-americano, representado por sua figura maior,
Thomas Jefferson, baseou-se fortemente nos ideais franceses de Rousseau,
Montesquieu, Voltaire e Locke (britânico).
O
sistema político norte-americano é baseado numa "união mais que perfeita entre
os estados", que detêm forte autonomia, porém perdem sua soberania. A Guerra de
Secessão (1861-1865) ocorreu justamente por alguns estados sulistas que
desejavam deixar a União para formar uma nação confederada independente. A
questão dos direitos dos estados (states’ rights) vs. competência
federal (congressional authority) sempre é muito debatida em tribunais.
O
sistema de direito costumeiro nos tribunais norte-americanos (common law
system) é baseado num sistema de precedentes (escopo das decisões,
similares a súmulas).
Pelo princípio do stare
decisis (do latim, stare decisis et non quieta movere), os
juízes são obrigados a seguir precedentes firmados.
Os
precedentes de cortes federais superiores, conhecidas por Circuit Courts
– sendo a corte federal mais alta, a Suprema Corte dos EUA – aplicam-se às
cortes inferiores na sua área de jurisdição (a jurisdição da Suprema Corte,
naturalmente, é nacional).
Casos de cortes estaduais
podem, eventualmente, chegar à Suprema Corte se envolverem uma questão
importante de Direito Constitucional ou de lei federal.
Cortes
federais são divididas em 94 corte distritais (U.S. District Courts) (tribunais
de instância); 13 Cortes de Apelação (U.S. Circuit Courts), e uma Suprema
Corte (uma Corte Constitucional, prevista no Artigo III, Seção 1, da
Constituição dos EUA, Tribunal de Última Instância), e são previstas no Ato
Judiciário de 1789 (Judiciary Act of 1789), e posteriormente reguladas
pelo Ato de Melhoria de Cortes Federais de 1982 (Federal Courts Improvement
Act of 1982). A Suprema Corte dos EUA (US Supreme Court) atualmente
é composta de um Ministro Presidente (Chief Justice) e oito Ministros
Associados (Associate Justices).
Por
interpretação da Suprema Corte em Marbury v. Madison (1803), precedentes
também se aplicam aos Poderes Executivo e Legislativo, pois os tribunais
norte-americanos fazem controle constitucional por via incidental, com efeito erga
omnes.
Muito raramente a Suprema Corte
reverte um de seus precedentes – a primeira vez foi em Erie Railroad Co. v.
Tompkins (1938).
Exemplo
de um precedente famoso já revertido: “Separados, mas Iguais” (Separate, but
Equal) em Plessy v. Ferguson (1896), oficializando a segregação
racial de jure nos EUA (revertido em Brown v. Board of Education of
Topeka (1954)).
Brown
– Destaque para figura de Thurgood
Marshall, à época diretor jurídico da entidade civil, Associação Nacional Para
o Avanço das Pessoas de Cor (National Association for the Advancement of
Colored People – NAACP), que argumentou o caso perante a Suprema Corte dos EUA,
e que posteriormente veio a ser o primeiro afro-americano Advogado Geral da
União dos Estados Unidos (Solicitor General of the United States – 1965-1967)
e Ministro Associado da Suprema Corte dos Estados Unidos (Associate Justice
of the Supreme Court of the United States – 1967-1991).
b)
Cláusula de Comércio (Commerce Clause) e Cláusula da Supremacia da
Constituição (Supremacy Clause)
Segundo a cláusula de comércio, cabe
ao Congresso Norte-Americano legislar sobre matérias que envolvam comércio com
nações estrangeiras, entre os diversos estados e com as tribos indígenas
(Artigo 1º, Seção 8, Cláusula III). A definição de comércio nos EUA,
principalmente dada pela interpretação da Suprema Corte, é vasta, sendo relações
empregatícias, por exemplo, consideradas relações de comércio. Além disso, o
comércio pode envolver tanto atividades comerciais entre
estados per se, como o intercâmbio de produtos agrícolas, navegação de
cabotagem, transporte ferroviário, etc., quanto matérias que afetam o comércio
– exemplo: imigração.
Já a “Cláusula da Supremacia da
Constituição”, ou “Cláusula da Supremacia” (Supremacy Clause), delimita que a Constituição dos EUA, as
leis federais feitas em conformidade com aquela, bem como tratados
internacionais recepcionados internamente nos Estados Unidos, constituem a Lei
Maior da Nação (Supreme
Law of the Land), e, portanto, têm prioridade sob quaisquer leis
estaduais conflitantes (Artigo 6º, Cláusula 2, da Constituição dos EUA).
Um
caso que vale mencionar é a contestação em tribunais (judicial challenge)
do governo do ex-presidente Barack Obama (2009-2017) à draconiana Arizona‘s S.B.
1070.
Trata-se
de lei estadual de 2010, visando aumentar as competências e prerrogativas de
autoridades daquele estado, que faz fronteira com o México, para executarem
leis federais imigratórias.
A
ação impetrada pelo governo Obama em tribunais federais chegou à Suprema Corte,
em 2012 (Arizona
v. United States, 2012), quando uma maioria de seus ministros (Justices)
declarou inconstitucionais diversas cláusulas daquela lei, por haver preempção
federal (leia-se, prevalência de lei federal em relação ao tema), derivada da
Cláusula da Supremacia da Constituição.
Casos
significativos envolvendo as cláusulas de comércio e preempção federal:
United States v. Lopez (1995)
-
Primeira vez desde a década de 30 que a Suprema Corte invalidou um ato federal
por considerá-lo conflitante com a cláusula
de comércio.
-
Alberto Lopez Jr., estudante secundarista, foi autuado por porte de arma numa
escola do Texas. O governo federal declarou preempção no caso, por haver lei
federal acerca do tema, e o processou em cortes federais. Lopez apelou da
decisão.
- A
Suprema Corte decidiu por 5 votos a 4 que a lei federal em questão violava a cláusula de comércio, pois o porte de armas em escolas não é uma questão que envolva ou afete o comércio interestadual, portanto, é uma matéria que cabe aos
estados resolverem.
Gonzales v. Raich (2005)
-
Lei estadual californiana previa o uso medicinal da maconha para pacientes em
estado terminal. O governo federal (representado na figura do seu
Procurador-Geral, Alberto Gonzales) tomou medidas para erradicar plantações
caseiras de maconha na Califórnia por conflitarem com a lei federal de combate a
entorpecentes.
- A
Suprema Corte, por 6 votos a 3, acatou a tese do governo federal e declarou a lei
estadual conflitante com a lei federal, por preempção, visto que esta era mais
antiga e tratava de um tema que significativamente afetava o comércio
interestadual (o cultivo de drogas ilícitas).
b)
Controle de Constitucionalidade (Judicial Review)
-
Originalmente, não havia controle de constitucionalidade de atos dos poderes executivo e legislativo por parte do Poder Judiciário. Isso mudou com Marbury
v. Madison (1803).
Marbury
v. Madison (1803)
- John Adams, segundo presidente dos EUA, havia perdido a reeleição para Thomas
Jefferson e nos últimos meses como presidente, para agradar aliados, criou
cargos em comissão, nomeando algumas pessoas, entre elas, William Marbury para
o cargo de juiz de paz do Distrito de Columbia.
-
Entretanto, Marbury não teve tempo hábil de ter sua comissão entregue por
Adams, cabendo essa formalidade a James Madison, Secretário de Estado do novo
presidente, que se recusou a fazê-lo.
-
Marbury então impetrou um Mandado de Segurança perante a Suprema Corte
norte-americana (nos EUA, conhecido por Writ of Mandamus).
- A
Suprema Corte, na figura de seu presidente, John Marshall, para não ter que
entregar a comissão, o que poderia atritar com o presidente da república, e não
dar uma resposta negativa para Marbury, o que poderia causar acusações de se
curvarem ao poderio do Poder Executivo Federal, alcançaram uma solução
intermediária: o Ato Judiciário de 1789 (Judiciary Act of 1789) que
possibilitou que Marbury apelasse diretamente à Suprema Corte foi declarado
inconstitucional por não estar de acordo com o Artigo III da Constituição,
trazendo o conceito de controle de constitucionalidade. Além disso, a Corte
Marshall declarou que a Suprema Corte não tinha competência originária para o
caso.
- A
Suprema Corte dos EUA evitou declarar incompatíveis leis federais com a
Constituição Norte-Americana por quase 50 anos, até Dred Scott v. Sandford (1857), julgado às vésperas da Guerra de Secessão Norte-Americana. Até setembro de
2017, a Suprema Corte dos EUA declarou a inconstitucionalidade de parte, ou da
totalidade, de 182 atos legislativos do Congresso Norte-Americano (U.S.
Capitol), Poder Legislativo Federal.
d)
Níveis de Controle de Constitucionalidade
Lochner
v. New York (1905)
-
Joseph Lochner, dono de padarias, contestou a constitucionalidade de lei do
estado de Nova Iorque que imponha um limite de dez horas diárias (ou sessenta
horas semanais) ao trabalho de padeiros, trabalho enormemente desgastante,
segundo peritos, por estarem esses sujeitos às altas temperaturas e fumaça
emitidas pelos fornos. Segundo ele, seu direito de contratar, da maneira que
bem entendesse, estava previsto no direito à liberdade previsto na 14ª Emenda
da Constituição.
- A
Suprema Corte, por 5 votos a 4, acatou a tese. Isso gerou a chamada Era Lochner
(1905 a 1936), período em que a Suprema Corte, então composta apenas por homens
caucasianos, protestantes e, em geral, conservadores, declarou
inconstitucionais diversos atos federais e estaduais, tendo os declarado
intrusivos à iniciativa privada.
-
Nesse sentido é interessante observar que a constituição norte-americana, ao
contrário das constituições europeias e latino-americanas, não prevê direitos
sociais como o direito à saúde e à educação. Sendo assim, a discussão que se
faz em relação às leis que prevejam esses direitos, não é se são previstos
constitucionalmente, e sim se são constitucionais por respeitarem as cláusulas
do devido processo legal e da proteção igual previstas na 14ª Emenda (Vide United
States v. Carolene Products Co., (1938)).
United States v. Carolene Products Co. (1938)
-
Contexto do New Deal de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945). Fortes
medidas estatais para reativar a economia.
- Os
Ministros (Justices) da Suprema Corte, então aliados do Presidente
Roosevelt, num caso então não muito significativo envolvendo controle de
qualidade de leite condensado, escreveram provavelmente a mais famosa nota de
rodapé da história daquele país – Footnote Four (Nota de Rodapé 4) – que
sugeriu que as cortes deveriam dar mais deferência a medidas econômicas
governamentais, por se basearem em posições político-ideológicas, focando o
controle de constitucionalidade em leis que imponham consequências de caráter
social (como, por exemplo, classificações raciais).
High Scrutiny (Strict
Scrutiny) – Alto Controle (Controle estrito)
Korematsu v. United States (1944)
-
Fred Korematsu, norte-americano de ascendência japonesa, contestou a
constitucionalidade da Ordem Executiva (Executive Order) n. 9066 que
determinava o recolhimento de japoneses-americanos em campos de detenção
durante a Segunda Guerra Mundial. A Suprema Corte, por 6 votos a 3, manteve sua
prisão, mesmo Korematsu não tendo sido condenado por nenhum delito.
-
Atos envolvendo raça, nacionalidade, estrangeiros e religião (classificações
suspeitas) são inconstitucionais, ao menos se o legislador demonstrar um
interesse governamental contundente, elaborado de forma detalhada e que envolva
a maneira menos restritiva a direitos (compelling governmental interest,
narrowly tailored, least restrictive means).
- Caso recente: Johnson v. California (2005)
Mid-level Scrutiny – Controle Médio
Craig v. Boren (1976)
-
Caso contestando Lei do Estado do Oklahoma que permitia mulheres consumirem
bebida alcoólica com 18 anos e homens apenas com 21 anos.
-
Atos envolvendo classificações entre sexos são inconstitucionais, ao menos se o
legislador demonstrar a existência de objetivos específicos governamentais
importantes e a lei deve ser substancialmente relacionada ao alcance desses
objetivos (existence of specific important governmental objectives, and the
law must be substantially related to the achievement of those objectives).
-
Destaque para a figura da Ministra (Justice) Ruth Bader Ginsburg,
feminista renomada, à época advogada da entidade de Direitos Civis, União
Americana pelas Liberdades Civis (American Civil Liberties Union – ACLU).
- Controle melhor elaborado no caso United
States v. Virginia (1996), envolvendo uma escola militar apenas para homens
– de relatoria da Ministra Ginsburg, já como ministra da Suprema Corte (o
governo deve demonstrar uma “justificativa excessivamente persuasiva” (exceedingly persuasive justification)).
Low-level scrutiny (Rational basis
review) – Baixo Controle (Revisão com base racional).
Williamson v. Lee Optical Co. (1955)
-
Caso envolvendo uma Lei do Estado do Oklahoma que declarava que apenas
optometristas ou oftalmologistas, ou alguém com sua autorização expressa,
podiam regular lentes de óculos ou outras espécies de lentes.
-
Demais atos são constitucionais – portanto não se analisam seus méritos –,
desde que o legislador demonstre serem racionalmente relacionados a um
interesse governamental legítimo (rationally related to a legitimate
government interest).
e)
Ativismo judicial e o Direito à Privacidade
A
Constituição dos EUA (US Constitution), emanada há mais de duzentos anos, é um documento antigo, feito em um período em que a maioria das pessoas não votavam, apenas homens caucasianos, de uma certa renda (voto censitário), e em que a escravidão era permitida, e, portanto, evoluiu significativamente com o
tempo. Faz-se importante observar que a Constituição, desde sua concepção,
proibia qualquer teste religioso (religious test) para aqueles que
desejassem servir no governo (Artigo 6º, Seção III).
Para
alguns, qualquer evolução significativa na Constituição dos EUA, em termos de
direitos civis (civil rights), deve ser por Emenda Constitucional,
votada pelo Congresso Norte-Americano, aprovado pela maioria dos estados – a
exemplo das 13ª, 14ª e 15ª Emendas, que são conhecidas por as Emendas da Era da
Reconstrução, pós Guerra de Secessão (Reconstruction Era Amendments –
1865-1877), e que permitiram direitos iguais a todos, incluindo ex-escravos.
O
Direito à Privacidade (Right of Privacy) é um claro exemplo na diferença
de interpretação da Constituição dos EUA (US Constitution) entre liberais
(progressistas, ativistas e neoconstitucionalistas) e conservadores
(originalistas, textualistas e jusnaturalistas) nos Estados Unidos, visto que é
fortemente baseado numa forte interpretação judicial de alguns dos artigos e
emendas à Constituição, e portanto um direito implícito, não explicito no texto
constitucional, e portanto não existente, para juristas originalistas e
textualistas.
No
entanto, faz-se possível observar que até direitos expressamente previstos na
Constituição dos EUA podem se tornar nulos e não exequíveis, sem a legislação
apropriada, e podem inclusive perder sua eficácia por decisões judicias, tais
como as 14ª e 15ª Emendas, que tinham como espírito garantir a igualdade de
direito a todos, sobretudo à afrodescendentes, pós-Guerra Civil – começando
pelos Casos da Casa de Matadouro (Slaughter-House Cases – 1873), culminando
com Plessy vs. Ferguson (1896).
f)
Direito à Privacidade (Substantive Due Process)
A
questão de haver, ou não, um direito à privacidade previsto na Constituição dos
EUA é muito debatido por juristas norte-americanos.debatida
Não
há nada na Constituição dos EUA que explicitamente preveja um Direito à
Privacidade (ou intimidade).
O
Direito à Privacidade foi primeiro mencionado no artigo “The Right to Privacy”,
escrito por Samuel Warren e Louis Brandeis, publicado na Revista de Direito de
Harvard – Harvard Law Review (1890).
Brandeis
mais tarde veio a ser Ministro da Suprema Corte e dedicou sua vida à defesa de
um direito à privacidade previsto constitucionalmente, como, por exemplo, no
caso de escutas telefônicas.
Griswold
v. Connecticut (1965)
-
Caso envolvendo lei do Estado de Connecticut que proibia o uso de
contraceptivos e restringia a liberdade do casal em realizar planejamento
familiar.
- A
Suprema Corte, por 7 votos a 2, declarou que o direito à privacidade é um direito
constitucional previsto nas “penumbras” e “emanações” da Declaração de Direitos
(exemplo: inviolabilidade de domicílio – Quarta Emenda à Constituição dos EUA).
Além disso, a privacidade teria sido incorporada aos estados pela cláusula do
devido processo legal (due process clause) da 14ª Emenda. Isso veio a
ser conhecido por devido processo material (substantive due process).
Roe
v. Wade (1973)
- Um dos casos mais
controversos da história dos EUA. Até hoje divide conservadores (Pro Life)
e liberais (Pro Choice).
-
Norma L. McCorvey, grávida pela terceira vez, tentou obter um aborto alegando
ter sido estuprada (a lei do Texas proibia o aborto, mas excepcionalmente o
permitia no caso de estupro e incesto). Por não conseguir provar o estupro, tentou
então obter um aborto ilegal em Dallas, Texas, onde a clínica de aborto havia
sido fechada. Finalmente, por meio de duas advogadas, resolveu contestar a lei
do Estado do Texas, representado na figura de seu promotor distrital, Henry
Wade (o pseudônimo “Jane Roe” foi lhe conferido por suas advogadas para
proteger sua integridade física, devido à sensibilidade do assunto).
- O
caso foi até a Suprema Corte que aceitou julgá-lo, apesar de McCorvey à época
já ter dado luz à criança, por entender que se tratava de uma questão relevante
de Direito Constitucional.
- A Suprema Corte
por 7 votos a 2 entendeu que o direito à privacidade, incorporado aos estados
pela cláusula do devido processo legal da 14ª Emenda, estendia-se ao direito de
uma mulher em decidir ter um aborto, mas que esse direito era apenas válido nos
três primeiros meses do feto, pela necessidade de se proteger a vida pré-natal
e a saúde da mulher.
(Revertida em 2022, por uma Suprema Corte com
seis ministros/as conservadores, em Dobbs v.
Jackson Women's Health Organization).
Lawrence
v. Texas (2003)
-
John Lawrence, um homem adulto, foi flagrado pela polícia realizando relações
sexuais homossexuais com outro homem adulto em seu apartamento. A polícia, no
caso, estava verificando uma denúncia anônima de violência doméstica, que
depois se provou falsa.
-
Autuado por violar as leis de sodomia do estado do Texas – que taxativamente incluía
relações sexuais homoafetivas no rol de sodomia –, Lawrence contestou sua
condenação, alegando seu direito à privacidade, aplicável aos Estados pela
Décima-Quarta Emenda da Constituição dos EUA (substantive due process).
O caso foi até a Suprema Corte.
- A
Suprema Corte por 6 votos a 3 reverteu seu precedente em Bowers v. Hardwick (1986)
– situação rara no common law norte-americano –, acatando a tese de
Lawrence, de violação ao seu direito à privacidade, e declarando o estatuto do
Texas inconstitucional (13 estados à época criminalizavam práticas sexuais
homoafetivas).
- Lawrence servia de precedente para
outras decisões da Suprema Corte envolvendo temas LGBT, como Obergefell v. Hodges (2015),
no qual a Suprema Corte dos EUA entendeu que proibições de alguns estados
norte-americanos a casamentos homoafetivos serem inconstitucionais perante a
14ª Emenda (revertendo o precedente firmado em Baker v. Nelson,
1971).
g)
Direito à Privacidade (Substantive Due Process) – Conclusões
- Referida interpretação jurisprudencial
(substantive due process) dá enorme poder aos tribunais norte-americanos
para declarar inconstitucionais leis e atos estaduais. Essa interpretação é
muito criticada por grupos conservadores que a consideram invasiva aos Direitos
dos Estados e à forma de atuação política por parte dos magistrados (ativismo
judicial).
- Observe, ainda, que orientação sexual
não é uma classe suspeita, sujeita ao teste do controle estrito previsto em Korematsu.
Isso porque, na visão da maioria em Lawrence – com exceção da Ministra
Sandra Day O’Connor –, homossexualidade é uma questão de conduta, não de
identidade, a ser protegida, portanto, pela cláusula do devido processo legal (due process clause), e não pela cláusula da proteção igual (equal protection clause), ambas previstas na 14ª Emenda da Constituição
dos EUA.