Monday, November 24, 2025

Sistema Constitucional nos EUA e o Ativismo Judicial, Por Olavo Caiuby Bernardes

Sistema Constitucional nos EUA e o Ativismo Judicial, Por Olavo Caiuby Bernardes 

(Versão atualizada em 24.06.2023, pós Dobbs v. Jackson Women's Health Organization (2022), que reverteu Roe v. Wade (1973).)


a) A Constituição Norte-Americana e o sistema de precedentes
 

Constituição elaborada em 1787 (Promulgada em 4 de março de 1789).

Um preâmbulo, 7 artigos, 27 emendas. 

Dez Primeiras Emendas (1791). Carta de Direitos (Bill of Rights) – Liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de associação, liberdade de prática de religião, direito ao porte de armas, inviolabilidade do domicílio, direito a um tribunal de júri (julgamento por seus pares), direito contra a autoincriminação, contra fianças e multas excessivas, penas inusitadas e cruéis, entre outros direitos.

As Dez Primeiras Emendas originalmente seriam aplicáveis apenas ao governo federal (e, portanto, tribunais federais), porém por interpretação da Suprema Corte, em diversos casos, passaram, em sua maioria, a ser aplicadas aos estados, visto que a 14ª Emenda (que se aplica aos estados) as teria incorporado (os casos começam por Gitlow v. New York (1925)).

14ª Emenda. Emenda muito importante. Por própria declaração do legislador constituinte, aplica-se aos estados. Prevê o direito à vida, liberdade e devido processo legal (due process of law), bem como o direito à proteção igual para todos (equal protection of the laws).

A Constituição Norte-Americana e a Declaração de Independência (de 04 de julho de 1776) não são documentos análogos, sendo os conceitos trazidos pela Declaração (vida, liberdade, busca da felicidade...), conceitos que alguns juristas dizem ter sido adotados pela Constituição Estadunidense, e outros que seriam meras diretrizes.

Há separação de poderes expressamente prevista pela Constituição que delimita suas funções, em nível federal – Artigos 1º a 3º; Artigo 6º, Cláusula Segunda, Cláusula da Supremacia da Constituição, e Décima Emenda, que estabelece os Poderes Delegados aos estados norte-americanos (entre estes de elaborarem suas próprias Constituições Estaduais).

Checks and balances (Pesos e contrapesos). O legislador constituinte norte-americano, representado por sua figura maior, Thomas Jefferson, baseou-se fortemente nos ideais franceses de Rousseau, Montesquieu, Voltaire e Locke (britânico).

O sistema político norte-americano é baseado numa "união mais que perfeita entre os estados", que detêm forte autonomia, porém perdem sua soberania. A Guerra de Secessão (1861-1865) ocorreu justamente por alguns estados sulistas que desejavam deixar a União para formar uma nação confederada independente. A questão dos direitos dos estados (states’ rights) vs. competência federal (congressional authority) sempre é muito debatida em tribunais.

O sistema de direito costumeiro nos tribunais norte-americanos (common law system) é baseado num sistema de precedentes (escopo das decisões, similares a súmulas).

Pelo princípio do stare decisis (do latim, stare decisis et non quieta movere), os juízes são obrigados a seguir precedentes firmados.

Os precedentes de cortes federais superiores, conhecidas por Circuit Courts – sendo a corte federal mais alta, a Suprema Corte dos EUA – aplicam-se às cortes inferiores na sua área de jurisdição (a jurisdição da Suprema Corte, naturalmente, é nacional).

Casos de cortes estaduais podem, eventualmente, chegar à Suprema Corte se envolverem uma questão importante de Direito Constitucional ou de lei federal.

Cortes federais são divididas em 94 corte distritais (U.S. District Courts) (tribunais de instância); 13 Cortes de Apelação (U.S. Circuit Courts), e uma Suprema Corte (uma Corte Constitucional, prevista no Artigo III, Seção 1, da Constituição dos EUA, Tribunal de Última Instância), e são previstas no Ato Judiciário de 1789 (Judiciary Act of 1789), e posteriormente reguladas pelo Ato de Melhoria de Cortes Federais de 1982 (Federal Courts Improvement Act of 1982). A Suprema Corte dos EUA (US Supreme Court) atualmente é composta de um Ministro Presidente (Chief Justice) e oito Ministros Associados (Associate Justices).

Por interpretação da Suprema Corte em Marbury v. Madison (1803), precedentes também se aplicam aos Poderes Executivo e Legislativo, pois os tribunais norte-americanos fazem controle constitucional por via incidental, com efeito erga omnes.

Muito raramente a Suprema Corte reverte um de seus precedentes – a primeira vez foi em Erie Railroad Co. v. Tompkins (1938).

Exemplo de um precedente famoso já revertido: “Separados, mas Iguais” (Separate, but Equal) em Plessy v. Ferguson (1896), oficializando a segregação racial de jure nos EUA (revertido em Brown v. Board of Education of Topeka (1954)).

Brown – Destaque para figura de Thurgood Marshall, à época diretor jurídico da entidade civil, Associação Nacional Para o Avanço das Pessoas de Cor (National Association for the Advancement of Colored People – NAACP), que argumentou o caso perante a Suprema Corte dos EUA, e que posteriormente veio a ser o primeiro afro-americano Advogado Geral da União dos Estados Unidos (Solicitor General of the United States – 1965-1967) e Ministro Associado da Suprema Corte dos Estados Unidos (Associate Justice of the Supreme Court of the United States – 1967-1991).

 

b) Cláusula de Comércio (Commerce Clause) e Cláusula da Supremacia da Constituição (Supremacy Clause)

Segundo a cláusula de comércio, cabe ao Congresso Norte-Americano legislar sobre matérias que envolvam comércio com nações estrangeiras, entre os diversos estados e com as tribos indígenas (Artigo 1º, Seção 8, Cláusula III). A definição de comércio nos EUA, principalmente dada pela interpretação da Suprema Corte, é vasta, sendo relações empregatícias, por exemplo, consideradas relações de comércio. Além disso, o comércio pode envolver tanto atividades comerciais entre estados per se, como o intercâmbio de produtos agrícolas, navegação de cabotagem, transporte ferroviário, etc., quanto matérias que afetam o comércio – exemplo: imigração.

a “Cláusula da Supremacia da Constituição”, ou “Cláusula da Supremacia” (Supremacy Clause), delimita que a Constituição dos EUA, as leis federais feitas em conformidade com aquela, bem como tratados internacionais recepcionados internamente nos Estados Unidos, constituem a Lei Maior da Nação (Supreme Law of the Land), e, portanto, têm prioridade sob quaisquer leis estaduais conflitantes (Artigo 6º, Cláusula 2, da Constituição dos EUA).

Um caso que vale mencionar é a contestação em tribunais (judicial challenge) do governo do ex-presidente Barack Obama (2009-2017) à draconiana Arizona‘s S.B. 1070.

Trata-se de lei estadual de 2010, visando aumentar as competências e prerrogativas de autoridades daquele estado, que faz fronteira com o México, para executarem leis federais imigratórias.

A ação impetrada pelo governo Obama em tribunais federais chegou à Suprema Corte, em 2012 (Arizona v. United States, 2012), quando uma maioria de seus ministros (Justices) declarou inconstitucionais diversas cláusulas daquela lei, por haver preempção federal (leia-se, prevalência de lei federal em relação ao tema), derivada da Cláusula da Supremacia da Constituição.

Casos significativos envolvendo as cláusulas de comércio e preempção federal:

United States v. Lopez (1995)

- Primeira vez desde a década de 30 que a Suprema Corte invalidou um ato federal por considerá-lo conflitante com a cláusula de comércio.

- Alberto Lopez Jr., estudante secundarista, foi autuado por porte de arma numa escola do Texas. O governo federal declarou preempção no caso, por haver lei federal acerca do tema, e o processou em cortes federais. Lopez apelou da decisão.

- A Suprema Corte decidiu por 5 votos a 4 que a lei federal em questão violava a cláusula de comércio, pois o porte de armas em escolas não é uma questão que envolva ou afete o comércio interestadual, portanto, é uma matéria que cabe aos estados resolverem.

 

Gonzales v. Raich (2005) 

- Lei estadual californiana previa o uso medicinal da maconha para pacientes em estado terminal. O governo federal (representado na figura do seu Procurador-Geral, Alberto Gonzales) tomou medidas para erradicar plantações caseiras de maconha na Califórnia por conflitarem com a lei federal de combate a entorpecentes.

- A Suprema Corte, por 6 votos a 3, acatou a tese do governo federal e declarou a lei estadual conflitante com a lei federal, por preempção, visto que esta era mais antiga e tratava de um tema que significativamente afetava o comércio interestadual (o cultivo de drogas ilícitas).

 

b) Controle de Constitucionalidade (Judicial Review)

- Originalmente, não havia controle de constitucionalidade de atos dos poderes executivo e legislativo por parte do Poder Judiciário. Isso mudou com Marbury v. Madison (1803).

 

Marbury v. Madison (1803)

- John Adams, segundo presidente dos EUA, havia perdido a reeleição para Thomas Jefferson e nos últimos meses como presidente, para agradar aliados, criou cargos em comissão, nomeando algumas pessoas, entre elas, William Marbury para o cargo de juiz de paz do Distrito de Columbia.

- Entretanto, Marbury não teve tempo hábil de ter sua comissão entregue por Adams, cabendo essa formalidade a James Madison, Secretário de Estado do novo presidente, que se recusou a fazê-lo.

- Marbury então impetrou um Mandado de Segurança perante a Suprema Corte norte-americana (nos EUA, conhecido por Writ of Mandamus).

- A Suprema Corte, na figura de seu presidente, John Marshall, para não ter que entregar a comissão, o que poderia atritar com o presidente da república, e não dar uma resposta negativa para Marbury, o que poderia causar acusações de se curvarem ao poderio do Poder Executivo Federal, alcançaram uma solução intermediária: o Ato Judiciário de 1789 (Judiciary Act of 1789) que possibilitou que Marbury apelasse diretamente à Suprema Corte foi declarado inconstitucional por não estar de acordo com o Artigo III da Constituição, trazendo o conceito de controle de constitucionalidade. Além disso, a Corte Marshall declarou que a Suprema Corte não tinha competência originária para o caso.

- A Suprema Corte dos EUA evitou declarar incompatíveis leis federais com a Constituição Norte-Americana por quase 50 anos, até Dred Scott v. Sandford (1857), julgado às vésperas da Guerra de Secessão Norte-Americana. Até setembro de 2017, a Suprema Corte dos EUA declarou a inconstitucionalidade de parte, ou da totalidade, de 182 atos legislativos do Congresso Norte-Americano (U.S. Capitol), Poder Legislativo Federal.

 

d) Níveis de Controle de Constitucionalidade

 

Lochner v. New York (1905)

- Joseph Lochner, dono de padarias, contestou a constitucionalidade de lei do estado de Nova Iorque que imponha um limite de dez horas diárias (ou sessenta horas semanais) ao trabalho de padeiros, trabalho enormemente desgastante, segundo peritos, por estarem esses sujeitos às altas temperaturas e fumaça emitidas pelos fornos. Segundo ele, seu direito de contratar, da maneira que bem entendesse, estava previsto no direito à liberdade previsto na 14ª Emenda da Constituição.

- A Suprema Corte, por 5 votos a 4, acatou a tese. Isso gerou a chamada Era Lochner (1905 a 1936), período em que a Suprema Corte, então composta apenas por homens caucasianos, protestantes e, em geral, conservadores, declarou inconstitucionais diversos atos federais e estaduais, tendo os declarado intrusivos à iniciativa privada.

- Nesse sentido é interessante observar que a constituição norte-americana, ao contrário das constituições europeias e latino-americanas, não prevê direitos sociais como o direito à saúde e à educação. Sendo assim, a discussão que se faz em relação às leis que prevejam esses direitos, não é se são previstos constitucionalmente, e sim se são constitucionais por respeitarem as cláusulas do devido processo legal e da proteção igual previstas na 14ª Emenda (Vide United States v. Carolene Products Co., (1938)).

 

United States v. Carolene Products Co. (1938)

- Contexto do New Deal de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945). Fortes medidas estatais para reativar a economia.

- Os Ministros (Justices) da Suprema Corte, então aliados do Presidente Roosevelt, num caso então não muito significativo envolvendo controle de qualidade de leite condensado, escreveram provavelmente a mais famosa nota de rodapé da história daquele país – Footnote Four (Nota de Rodapé 4) – que sugeriu que as cortes deveriam dar mais deferência a medidas econômicas governamentais, por se basearem em posições político-ideológicas, focando o controle de constitucionalidade em leis que imponham consequências de caráter social (como, por exemplo, classificações raciais).

 

High Scrutiny (Strict Scrutiny) – Alto Controle (Controle estrito)

Korematsu v. United States (1944)

- Fred Korematsu, norte-americano de ascendência japonesa, contestou a constitucionalidade da Ordem Executiva (Executive Order) n. 9066 que determinava o recolhimento de japoneses-americanos em campos de detenção durante a Segunda Guerra Mundial. A Suprema Corte, por 6 votos a 3, manteve sua prisão, mesmo Korematsu não tendo sido condenado por nenhum delito.

- Atos envolvendo raça, nacionalidade, estrangeiros e religião (classificações suspeitas) são inconstitucionais, ao menos se o legislador demonstrar um interesse governamental contundente, elaborado de forma detalhada e que envolva a maneira menos restritiva a direitos (compelling governmental interest, narrowly tailored, least restrictive means).

- Caso recente: Johnson v. California (2005)

 

Mid-level Scrutiny – Controle Médio

Craig v. Boren (1976)

- Caso contestando Lei do Estado do Oklahoma que permitia mulheres consumirem bebida alcoólica com 18 anos e homens apenas com 21 anos.

- Atos envolvendo classificações entre sexos são inconstitucionais, ao menos se o legislador demonstrar a existência de objetivos específicos governamentais importantes e a lei deve ser substancialmente relacionada ao alcance desses objetivos (existence of specific important governmental objectives, and the law must be substantially related to the achievement of those objectives).

- Destaque para a figura da Ministra (Justice) Ruth Bader Ginsburg, feminista renomada, à época advogada da entidade de Direitos Civis, União Americana pelas Liberdades Civis (American Civil Liberties Union – ACLU).

- Controle melhor elaborado no caso United States v. Virginia (1996), envolvendo uma escola militar apenas para homens – de relatoria da Ministra Ginsburg, já como ministra da Suprema Corte (o governo deve demonstrar uma “justificativa excessivamente persuasiva” (exceedingly persuasive justification)).

 

Low-level scrutiny (Rational basis review) – Baixo Controle (Revisão com base racional).

Williamson v. Lee Optical Co. (1955)

- Caso envolvendo uma Lei do Estado do Oklahoma que declarava que apenas optometristas ou oftalmologistas, ou alguém com sua autorização expressa, podiam regular lentes de óculos ou outras espécies de lentes.

- Demais atos são constitucionais – portanto não se analisam seus méritos –, desde que o legislador demonstre serem racionalmente relacionados a um interesse governamental legítimo (rationally related to a legitimate government interest).

 

e) Ativismo judicial e o Direito à Privacidade

A Constituição dos EUA (US Constitution), emanada há mais de duzentos anos, é um documento antigo, feito em um período em que a maioria das pessoas não votavam, apenas homens caucasianos, de uma certa renda (voto censitário), e em que a escravidão era permitida, e, portanto, evoluiu significativamente com o tempo. Faz-se importante observar que a Constituição, desde sua concepção, proibia qualquer teste religioso (religious test) para aqueles que desejassem servir no governo (Artigo 6º, Seção III).

Para alguns, qualquer evolução significativa na Constituição dos EUA, em termos de direitos civis (civil rights), deve ser por Emenda Constitucional, votada pelo Congresso Norte-Americano, aprovado pela maioria dos estados – a exemplo das 13ª, 14ª e 15ª Emendas, que são conhecidas por as Emendas da Era da Reconstrução, pós Guerra de Secessão (Reconstruction Era Amendments – 1865-1877), e que permitiram direitos iguais a todos, incluindo ex-escravos. 

O Direito à Privacidade (Right of Privacy) é um claro exemplo na diferença de interpretação da Constituição dos EUA (US Constitution) entre liberais (progressistas, ativistas e neoconstitucionalistas) e conservadores (originalistas, textualistas e jusnaturalistas) nos Estados Unidos, visto que é fortemente baseado numa forte interpretação judicial de alguns dos artigos e emendas à Constituição, e portanto um direito implícito, não explicito no texto constitucional, e portanto não existente, para juristas originalistas e textualistas.

No entanto, faz-se possível observar que até direitos expressamente previstos na Constituição dos EUA podem se tornar nulos e não exequíveis, sem a legislação apropriada, e podem inclusive perder sua eficácia por decisões judicias, tais como as 14ª e 15ª Emendas, que tinham como espírito garantir a igualdade de direito a todos, sobretudo à afrodescendentes, pós-Guerra Civil – começando pelos Casos da Casa de Matadouro (Slaughter-House Cases – 1873), culminando com Plessy vs. Ferguson (1896).

 

f) Direito à Privacidade (Substantive Due Process)

A questão de haver, ou não, um direito à privacidade previsto na Constituição dos EUA é muito debatido por juristas norte-americanos.debatida

Não há nada na Constituição dos EUA que explicitamente preveja um Direito à Privacidade (ou intimidade).

O Direito à Privacidade foi primeiro mencionado no artigo “The Right to Privacy”, escrito por Samuel Warren e Louis Brandeis, publicado na Revista de Direito de Harvard – Harvard Law Review (1890).

Brandeis mais tarde veio a ser Ministro da Suprema Corte e dedicou sua vida à defesa de um direito à privacidade previsto constitucionalmente, como, por exemplo, no caso de escutas telefônicas.

 

Griswold v. Connecticut (1965)

- Caso envolvendo lei do Estado de Connecticut que proibia o uso de contraceptivos e restringia a liberdade do casal em realizar planejamento familiar.

- A Suprema Corte, por 7 votos a 2, declarou que o direito à privacidade é um direito constitucional previsto nas “penumbras” e “emanações” da Declaração de Direitos (exemplo: inviolabilidade de domicílio – Quarta Emenda à Constituição dos EUA). Além disso, a privacidade teria sido incorporada aos estados pela cláusula do devido processo legal (due process clause) da 14ª Emenda. Isso veio a ser conhecido por devido processo material (substantive due process).

 

Roe v. Wade (1973)

- Um dos casos mais controversos da história dos EUA. Até hoje divide conservadores (Pro Life) e liberais (Pro Choice).

- Norma L. McCorvey, grávida pela terceira vez, tentou obter um aborto alegando ter sido estuprada (a lei do Texas proibia o aborto, mas excepcionalmente o permitia no caso de estupro e incesto). Por não conseguir provar o estupro, tentou então obter um aborto ilegal em Dallas, Texas, onde a clínica de aborto havia sido fechada. Finalmente, por meio de duas advogadas, resolveu contestar a lei do Estado do Texas, representado na figura de seu promotor distrital, Henry Wade (o pseudônimo “Jane Roe” foi lhe conferido por suas advogadas para proteger sua integridade física, devido à sensibilidade do assunto).

- O caso foi até a Suprema Corte que aceitou julgá-lo, apesar de McCorvey à época já ter dado luz à criança, por entender que se tratava de uma questão relevante de Direito Constitucional.

- A Suprema Corte por 7 votos a 2 entendeu que o direito à privacidade, incorporado aos estados pela cláusula do devido processo legal da 14ª Emenda, estendia-se ao direito de uma mulher em decidir ter um aborto, mas que esse direito era apenas válido nos três primeiros meses do feto, pela necessidade de se proteger a vida pré-natal e a saúde da mulher.

(Revertida em 2022, por uma Suprema Corte com seis ministros/as conservadores, em Dobbs v. Jackson Women's Health Organization).

 

Lawrence v. Texas (2003)

- John Lawrence, um homem adulto, foi flagrado pela polícia realizando relações sexuais homossexuais com outro homem adulto em seu apartamento. A polícia, no caso, estava verificando uma denúncia anônima de violência doméstica, que depois se provou falsa.

- Autuado por violar as leis de sodomia do estado do Texas – que taxativamente incluía relações sexuais homoafetivas no rol de sodomia –, Lawrence contestou sua condenação, alegando seu direito à privacidade, aplicável aos Estados pela Décima-Quarta Emenda da Constituição dos EUA (substantive due process). O caso foi até a Suprema Corte.

- A Suprema Corte por 6 votos a 3 reverteu seu precedente em Bowers v. Hardwick (1986) – situação rara no common law norte-americano –, acatando a tese de Lawrence, de violação ao seu direito à privacidade, e declarando o estatuto do Texas inconstitucional (13 estados à época criminalizavam práticas sexuais homoafetivas).

- Lawrence servia de precedente para outras decisões da Suprema Corte envolvendo temas LGBT, como Obergefell v. Hodges (2015), no qual a Suprema Corte dos EUA entendeu que proibições de alguns estados norte-americanos a casamentos homoafetivos serem inconstitucionais perante a 14ª Emenda (revertendo o precedente firmado em Baker v. Nelson, 1971).

 

g) Direito à Privacidade (Substantive Due Process) – Conclusões

- Referida interpretação jurisprudencial (substantive due process) dá enorme poder aos tribunais norte-americanos para declarar inconstitucionais leis e atos estaduais. Essa interpretação é muito criticada por grupos conservadores que a consideram invasiva aos Direitos dos Estados e à forma de atuação política por parte dos magistrados (ativismo judicial).

- Observe, ainda, que orientação sexual não é uma classe suspeita, sujeita ao teste do controle estrito previsto em Korematsu. Isso porque, na visão da maioria em Lawrence – com exceção da Ministra Sandra Day O’Connor –, homossexualidade é uma questão de conduta, não de identidade, a ser protegida, portanto, pela cláusula do devido processo legal (due process clause), e não pela cláusula da proteção igual (equal protection clause), ambas previstas na 14ª Emenda da Constituição dos EUA.

 

Sunday, November 2, 2025

Diálogos Interrompidos

Diálogos modernos são diálogos interrompidos, pois uma discordância, um comentário entendido de forma errada, um ponto de vista equivocado, um descordo político, um momento de stress, um mero dissabor pessoal, um rompimento de namorados, solidariedade de amigos com o rompimento do casal, ou mesmo o ciúme de um novo namorado, ou namorada a um contato, que se tem em redes, cancela-se.

Seja por uma rede, a exemplo de Facebook, Instagram, LinkedIn, WhatsApp, ou uma combinação de várias, leva-se ao limbo aquele interlocutor. A partir do momento ele, ou ela, não é mais nada, um fantasma do que foi. Relacionamentos fluidos, nada feito para durar.

O pensador polonês, Zygmunt Bauman, já dizia que o melhor das relações virtuais não é a capacidade de se fazer amizade, mas a capacidade de desfazê-las. Relações pessoais são duradouras, demandam esforços, são uma verdadeira construção.

Mundo binário, cada vez mais intolerante, de falta de debate e empatia com o ponto de vista do outro, e/ou com o sofrimento e o momento por que o outro está passando. E com isso uma juventude cada vez mais triste, que não sabe interagir.

O ser humano, a cada vez mais desconsiderado em sua individualidade, ao ser cancelado na vida virtual, percebe-se um encerramento da tolerância na vida real. Quando às vezes ainda muito havia a se dizer entre os interlocutores.

P.S. Se fui inconveniente em algum momento, em alguma interação, sinto por isso. Não sabem pelo que uma pessoa passa no seu dia a dia...

Saturday, May 3, 2025

Minhas memórias do Rio

 

Minhas memórias do Rio

 (Texto escrito para a Oficina Literária do CAP)

Olavo Caiuby Bernardes

 

Nasci no Rio, na casa onde cresci em São Conrado tinha jabuticabeira e uma arara que dizia arara todo dia.

A casa ficava abaixo do nível do mar, e quando chovia muito alagava.

Tínhamos um cão que era super-diferente, West Highland White Terrier, o Ubaldo (nome do irmão do meu bisavô, Olavo), o primeiro do Brasil. Ele sofria muito pois era peludo e não suportava o calor. Tínhamos também uma pastora-alemã, a Axé, que era um amor com todo nós, mas que era uma fera com qualquer estranho na rua.

Gostava de ir no Bob’s, mas achava a batata muito salgada. Aprendi a andar de bicicleta sem rodinha, como muitos cariocas, no calçadão de Ipanema e Copacabana. Ia na piscina do Hotel Intercontinental, em São Conrado, onde havia um bar molhado no meio da piscina, que achava a coisa mais extraordinária. Também gostava muito do Jardim Botânico e da fonte de água natural, e pude levar minha filha lá recentemente.

Tínhamos também um saveiro (uma espécie de veleiro), que ficava ancorado na Marina da Gloria, que velejávamos o final de semana. O marinheiro tinha um ratinho branco, que ficava andado de cima para baixo na proa do barco.

Estudei no Maternal, perto de casa, e no Jardim de Infância, esse último em escola alemã, no Corcovado. Rezávamos o Pai Nosso em alemão, e lembro-me que cantávamos o Hino Nacional do Brasil e Alemanha. Uma vez fizeram um bolo gigante de metros de altura, de aniversário da escola. Nas férias e feriados íamos para São Paulo visitar meus avôs, muitas vezes de trem, algo que infelizmente não existe mais...

Quando tinha sete anos, meus pais, que são ambos paulistanos, voltaram para São Paulo, para depois virem a se divorciar um ano depois, e minha experiência do Rio acabou. Ainda lembro da arara e da fonte de água do Jardim Botânico, que pude levar minha filha recentemente, para ela, nova geração, já perguntar se é água filtrada e se podia tomá-la...

Thursday, March 13, 2025

Minhas Impressões do Oscar 2025

Conclave e Anora ganharam Roteiro Adaptado e Melhor Roteiro Original. Ambos são excelentes!

Talvez forçaram em dar o Oscar de Melhor Atriz, para a Mikey Madison (que, diga-se de passagem, está ótima no papel, da personagem título do filme), ao invés da então preferida Demi Moore por A Substância (muito bom filme, lembra filmes do David Cronenberg, como Dead Ringer/Gêmeos - Mórbida Semelhança, e A Mosca, mas o filme/climax do filme é bastante decepcionante), ou Melhor Filme para Anora (e diretor para Sean Baker, de The Florida Project, entre outros).

De qualquer modo, é uma grande vitória para o cinema independente, tendo sido produzido e distribuído pela Neon, produtora independente em crescimento, desde que Parasita, filme sul-coreano distribuido por aquela produtora/distribuidora no mercado internacional, 
 ganhou o Oscar em 2020  (seu principal concorrente esse ano foi O Brutalista, produzido e distribuído pela A24, produtora independente que igualmente vem crescendo bastante, com inúmeras nomeações nos últimos anos - foram deles, por exemplo, Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, e A Baleia, que foram os principais premiados, no Oscar 2023). 

Achei que O Brutalista faltou alguma coisa, sua segunda parte é bem mais irregular que a primeira e o personagem de László Tóth, imigrante húngaro, nos EUA, pós-Segunda Guerra, arquiteto judeu, do novamente oscarizado Adrien Brody, não me convenceu plenamente (além das críticas do uso de IA, para suavizar seu sotaque americano, nas cenas que fala em húngaro).

Teria dado a atuação para o Ralph Fiennes, pelo Cardeal do Vaticano, Thomas Lawrence, em Conclave (na sua terceira indicação ao Oscar), interpretação bem mais convincente e humana... Não assisti Emilia Perez mas teria dado o Oscar de Atriz Coadjuvante, para a Isabella Rosselini, também por Conclave, até por toda sua carreira (incrivelmente, essa atriz lendária de filmes como Veludo Azul, do recém-falecido David Lynch, de quem foi parceira durante anos, e filha da - três vezes oscarizada - atriz sueca Ingrid Bergman, e do diretor italiano, Roberto Rosselini - de clássicos do neorrealismo italiano, como Roma, Città Aperta/Roma, Cidade Aberta -, estava em sua primeira nomeação)!

Para Ator Coadjuvante Jeremy Strong (maravilhoso em The Apprentice), Edward Norton (comentários abaixo)  e Guy Pearce (bom em O Brutalista, apesar de não ter gostado das escolhas que fizeram para seu personagem), mereciam talvez mais que o Kieran Culkin, que sempre interpreta uma versão de si mesmo (a despeito de A Real Pain ser um bom - mas talvez não excelente - filme). Melhor Filme Internacional realmente só podia ser Ainda Estou Aqui, do Brasil (ou Flow, da Letônia), Emília Perez, que é francês, mas passa no México, foi mal avaliado pelo público, além de ter sido considerado ofensivo aos mexicanos!

Minhas impressões...

No mais, assisti A Complete Unknown sobre o Dylan, e achei excelente. O Timothée Chalamet me impressionou, como o Bob Dylan em começo de carreira (Edward Norton - na sua quarta nomeação -, como seu agente, Peter Seeger, e Monica Barbaro - igualmente nomeada -, como a cantora Joan Baez, estão ótimos também)!
Filme com um ótimo ritmo. Trilha sonora maravilhosa com clássicos do Dylan!
Teria ficado satisfeito com Chalamet, ou o Ralph Fiennes terem levado Melhor Ator. A interpretação do Brody, mais uma vez, não me convenceu...


Nas fotos, Mikey Madison e Sean Baker, de Anora, 
com seus Oscars



Saturday, March 8, 2025

O que ficou para trás

O que ficou para trás
Por Olavo Caiuby Bernardes

O que ficou para trás em passado, de momentos criados, momentos vividos, momentos trazidos, não traz momentos que possam ser repetidos.

No entanto, momentos nos deixam marcas, lembranças, aprendizados. Momentos são estruturados para criar o que somos.

O que somos, o que trazemos, o que vivemos, são reminiscências de nossas experiências, memórias para levar a vida inteira.

Memórias que ao fim podem moldar nossa personalidade, ao menos nosso cárater, nossos valores.

Memórias para serem estudadas, para serem aperfeiçoadas, para buscar o que há dentro de nós, mas jamais descartadas. Pois ao fim podemos buscá-las para evoluir.

Wednesday, October 16, 2024

Free Writing – The Day Santiago died by falling on the snow, by Olavo Caiuby Bernardes

Free Writing – One Thousand Words


The Day Santiago died by falling on the snow, by Olavo Caiuby Bernardes



The day that Santiago died, there was snow outside. The snow touched his face when it touched the ground after a fall. Some people presumed it was a heart attack, but others thought it was something else. It was a suspicious death. One that authorities were never able to explain.

Santiago was in perfect health, of good age, and recently engaged to be married to Carla, his on-and-off long-term girlfriend. At the time, although Chilean, he was living in the US while researching for a Ph.D. at Boston College, in Massachusetts.

Friends and family were baffled by the lack of explanation for his death. His body had to be immediately transported back to Santiago del Chile for proper burial. Santiago, named after the city his parents were from, was born and died in the same town, Boston (actually Cambridge, since his parents were studying at Harvard in the time).

His parents, both academics, moved to Cambridge, MA, in the early 70s, on a research grant granted as an emergency by the Harvard Faculty, who were concerned about the worsening situation of the Pinochet Regime. Both his parents were targets of that dictatorship, for their writing on Political Science and Literature (his father was a Sociologist and Professor who had worked with Salvador Allende’s government, and his mother was a Literature and Theater critic, writing for some of the top Chilean newspapers at the time). They were humanists, friends of all Chilean intellectuals, with his mother, in particular, being a good friend of Pablo Neruda’s wife, Matilde, the well-known Nobel Prize poet.

Santiago, born in early 1974, had an older sister, Carmen, who was three years older and born in their native country. After the September 11, 1973, Military Coup, his pregnant mother and Santiago's father were forced to leave the country to the US, where he was invited to do research at the John F. Kennedy School of Government at Harvard University.

They were so homesick most of the time that they named their son Santiago, the name of their native city. His father, Jaime, died as Santiago, in exile, some years later, under not-so-well-explained circumstances, either, some say out of sadness, some say by assassination due to a direct order from the Pinochet Regime. He was 48, the same age as Santiago when he died. Also, after falling suddenly in the snow in Massachusetts. No autopsy came with a conclusive result.

Their mother, Carmen Lucia, was devastated, even though it was still under the Pinochet Regime, in the mid-eighties, she decided to move back to Chile, to be closer to her family, a year later. She died in the early 2000s, of breast cancer, never remarrying, never getting again involved in politics, always keeping herself only to close friends and family, and always with a bit of sadness in her eyes.

Therefore, Santiago, from age 11, along with his sister, lived in Santiago del Chile. They were involved with student politics after the country`s re-democratization in 1990. Santiago, as his father, graduated in Social Science, and Carmen, as her mother, in Literature, particularly Comparative Literature, given her time in the U.S.

Santiago had some tough times adjusting back to Chile. He felt a wave of internal anger about what happened to his father, showed signs of rebellion, and thought about ending his life, as he wrote in his diaries. He was able to channel his anger by boxing, which he learned from a local gym coach.

After graduating from high school, he backpacked through Latin America and ended up living for a couple of years in Argentina, where he had some family, and worked with his uncle, Ignacio, at his local shop. While walking one day from work, he found his father's work at a local bookstore; his Ph.D. Thesis for the University of Chile was published as a book, “Estructuras de Poder en los Sindicatos de Chile” (Power Structures in the Chilean Unions).

He immediately read it and decided to dedicate himself to his father’s profession, enrolling in the University of Buenos Aires, already in his early 20s. He moved back to Chile for a Master’s Degree and to be close to his mother and sister. After getting a Master’s Degree from the Catholic University in Chile, he dedicated himself to teaching and writing for local newspapers, also working as a consultant for the Socialist Government of Michelle Bachelet, in the same fashion his father had done in the 70s.

 After the Conservative government of Sebastián Piñera went to power in 2018, he decided to go on the following year for a sabbatical in the US, where he was awarded a scholarship by Boston College and was there when the Covid-19 pandemic hit, not being able to move back to Chile and delaying his research.

As previously mentioned, in 2022, Santiago died in Massachusetts after waking up one day and falling into the snow. Although never married, he had lived many years with Carla, a Brazilian Academic, who was studying at the Catholic University in Chile. Back then, he was lecturing part-time as an Assistant Professor in Political Science.

Nobody understood well. He seemed perfectly healthy, apart from some smoking in the past (and occasional drugs in his youth). He was never hit with Covid and had no medical preconditions. Like his father, he had no heart condition (in fact, both his paternal grandfather and maternal grandfather lived up to their 90s). It is inexplicable what happened to Santiago and his father.


Saturday, February 17, 2024

Machado de Assis, The Wizard of Cosme Velho - Brazil's Literature Treasure

This weekend I had the opportunity to visit an exhibit of Machado de Assis' life work, in São Paulo. Machado de Assis (1839-1908) is considered Brazil's greatest writer and to some critics, such as Harold Bloom and Susan Sontag, one of the greatest writers to have ever lived.

Sadly not well known outside Brazil, this self-taught genius, born from a humble background, in the city of Rio de Janeiro, where he never practically left, had a prolific career as a novelist, starting the Realism movement in Brazil. Compared to authors such as Sterne, Swift, or Balzac, Machado spent his adult life as a civil servant, and sometimes a translator and literature critic in Rio (he translated Charles Dickens's work, Oliver Twist, into Portuguese, for instance).

He was also founding father, and the first president, of the Brazilian Academy of Literature (Academia Brasileira de Letras - ABL). To learn more about Machado, the "Wizard of Cosme Velho" (O Bruxo de Cosme Velho), as was his nickname, regarding the neighborhood in Rio where he spent most of his adult life, a very interesting article from The New Yorker on that writer! The New Yorker - Review on Machado de Assis - https://www.newyorker.com/magazine/2018/07/09/hes-one-of-brazils-greatest-writers-why-isnt-machado-de-assis-more-widely-read Itaú Cultural - Exhibition Machado de Assis - https://www.itaucultural.org.br/secoes/agenda-cultural/eterno-e-contemporaneo-machado-de-assis-e-homenageado-pelo-ocupacao